São Paulo, quarta-feira, 28 de outubro de 2009

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33ª MOSTRA DE SP

Crítica/"Singularidades de Uma Rapariga Loura"

Manoel de Oliveira retoma práticas de outros longas

Filme usa humor e ironia contra hábitos conservadores e trata da tensão entre o que se mostra e o que se esconde

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Que Portugal é esse que vemos no novo filme de Manoel de Oliveira? O dinâmico, da União Europeia e dos trens modernos, ou o antigo, das roupas sisudas, do comportamento recatado? Oliveira, quase 101 anos, conhece a ambos. Pode, com a desenvoltura e a vitalidade que sabemos, colocar em cena um jovem (só lá adiante saberemos que se chama Macário) que, trabalhando na contabilidade do comércio do tio, vê uma jovem loura. Na janela da casa em frente, ela abana seu leque.
Mais tarde, saberemos que essa imagem se chama Luísa. Macário a conhecerá num círculo literário também sisudo. Círculo rico fundado por um alto funcionário do governo Salazar. Oliveira não brinca em serviço. Ou por outra: brinca. Luísa tem uma beleza imaculada. Macário, a seu modo, também. O tio de Macário, não. Homem estranho, de feições severas e severíssimo no seu viver celibatário. Quando Macário lhe diz que casará com Luísa, ele rebate de imediato: ou o emprego ou o casamento.
A que mundo pertence o tio de Macário? Assim como a moça do leque, não ao nosso. No Portugal moderno usa-se ar condicionado contra o calor. Ou seja, vemos em "Singularidades" Oliveira de retorno a práticas que conhecemos: a presença da literatura, a acoplagem de dois (ou mais) tempos, o humor e a ironia voltados contra os hábitos conservadores (políticos, sobretudo) lusitanos. Mas existe algo mais nessa história curta, agradabilíssima e de final abrupto.
Em primeiro lugar, a janela: essa alusão à cumplicidade entre o olhar e o mundo exterior. É a janela que leva Macário de sua ocupação burocrática ao sonho com a rapariga loura. Em segundo lugar, o leque que Luísa segura, que serve para aliviar o calor mas também para que se mostre e se esconda ao mesmo tempo. Por fim, a imagem: Luísa é uma, antes de ser a pessoa de carne e osso que mais tarde, abruptamente, se revelará a Macário.
Todo o filme gira em torno da tensão entre o que se mostra e o que se esconde, entre o que se vê e o que se imagina -e das estranhas relações que podem entreter essas figuras em princípio opostas.
Pois por quem Macário se apaixona? Por um rosto, talvez. Ou pela imagem tão literária que se estampa nessa visão? Ou pela visão da janela do escritório? Quem é essa garota, nunca saberemos, embora venhamos a conhecer algumas de suas singularidades.
Talvez de um outro ponto de vista seja possível pensar no mistério do amor e na singularidade do humano, este ser que está e não está na natureza.


SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA

Quando: hoje, às 17h40, no Unibanco Arteplex 1, e em outros quatro dias e locais de exibição
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo




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