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33ª MOSTRA DE SP
Crítica/"Singularidades de Uma Rapariga Loura"
Manoel de Oliveira retoma práticas de outros longas
Filme usa humor e ironia contra hábitos conservadores
e trata da tensão entre o que se mostra e o que se esconde
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Que Portugal é esse que
vemos no novo filme
de Manoel de Oliveira?
O dinâmico, da União Europeia
e dos trens modernos, ou o antigo, das roupas sisudas, do
comportamento recatado?
Oliveira, quase 101 anos, conhece a ambos. Pode, com a desenvoltura e a vitalidade que
sabemos, colocar em cena um
jovem (só lá adiante saberemos
que se chama Macário) que,
trabalhando na contabilidade
do comércio do tio, vê uma jovem loura. Na janela da casa em
frente, ela abana seu leque.
Mais tarde, saberemos que
essa imagem se chama Luísa.
Macário a conhecerá num círculo literário também sisudo.
Círculo rico fundado por um alto funcionário do governo Salazar. Oliveira não brinca em serviço. Ou por outra: brinca.
Luísa tem uma beleza imaculada. Macário, a seu modo, também. O tio de Macário, não. Homem estranho, de feições severas e severíssimo no seu viver
celibatário. Quando Macário
lhe diz que casará com Luísa,
ele rebate de imediato: ou o emprego ou o casamento.
A que mundo pertence o tio
de Macário? Assim como a moça do leque, não ao nosso. No
Portugal moderno usa-se ar
condicionado contra o calor.
Ou seja, vemos em "Singularidades" Oliveira de retorno a
práticas que conhecemos: a
presença da literatura, a acoplagem de dois (ou mais) tempos, o humor e a ironia voltados
contra os hábitos conservadores (políticos, sobretudo) lusitanos. Mas existe algo mais
nessa história curta, agradabilíssima e de final abrupto.
Em primeiro lugar, a janela:
essa alusão à cumplicidade entre o olhar e o mundo exterior.
É a janela que leva Macário de
sua ocupação burocrática ao
sonho com a rapariga loura.
Em segundo lugar, o leque
que Luísa segura, que serve para aliviar o calor mas também
para que se mostre e se esconda
ao mesmo tempo. Por fim, a
imagem: Luísa é uma, antes de
ser a pessoa de carne e osso que
mais tarde, abruptamente, se
revelará a Macário.
Todo o filme gira em torno da
tensão entre o que se mostra e o
que se esconde, entre o que se
vê e o que se imagina -e das estranhas relações que podem
entreter essas figuras em princípio opostas.
Pois por quem
Macário se apaixona? Por um
rosto, talvez. Ou pela imagem
tão literária que se estampa
nessa visão? Ou pela visão da
janela do escritório? Quem é
essa garota, nunca saberemos,
embora venhamos a conhecer
algumas de suas singularidades.
Talvez de um outro ponto
de vista seja possível pensar no
mistério do amor e na singularidade do humano, este ser que
está e não está na natureza.
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
Quando: hoje, às 17h40, no Unibanco Arteplex 1, e em outros quatro
dias e locais de exibição
Classificação: 14 anos
Avaliação: ótimo
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