São Paulo, quarta-feira, 28 de outubro de 2009

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MARCELO COELHO

O incêndio é no vizinho


Elias Canetti gosta de descobrir nos outros os impulsos brutais que ele próprio controla mal


CONTINUO SEM vontade de escrever sobre a euforia olímpica e a guerra dos traficantes no Rio de Janeiro. Os fatos, por vezes, comentam-se a si mesmos.
Mas, a começar pelo título ("Festa Sob as Bombas"), um livro recém-lançado pela editora Estação Liberdade merece comentário aqui.
Foi escrito por Elias Canetti (1905-1994), já bem no fim da vida. O Prêmio Nobel, que Canetti ganhou em 1981, não diminuiu o azedume dessas páginas.
"Festa Sob as Bombas" não é um livro acabado: compõe-se das anotações, às vezes repetitivas, para o que seria o quarto volume das memórias do escritor. Canetti passou, na Inglaterra, os anos da Segunda Guerra Mundial e viu o início dos bombardeios alemães sobre Londres.
É durante um desses bombardeios que se dá a festa do título, realizada na casa de um colecionador de arte. A casa tinha três andares.
"Ninguém se importava com o fato de ouvir detonações de bombas, era uma reunião festiva destemida e muito viva. Eu tinha começado no último andar e mal dera crédito a meus olhos, desci até o segundo e acreditei ainda menos no que vi. Cada ambiente parecia mais fogoso do que aquele em que estivera antes."
Já no subsolo da casa, "aconteceu o mais assombroso".
"A porta que dava para fora foi aberta bruscamente, homens com capacetes de bombeiros agarraram baldes com areia e, banhados em suor, levaram-nos com velocidade máxima à rua. Não prestaram atenção em nada do que viam no cômodo, em sua pressa de proteger as casas que ardiam em chamas na vizinhança."
Enquanto isso, os pares que estavam agarrados continuaram do mesmo jeito; "ninguém se levantou bruscamente, ninguém largou o parceiro, era como se a atividade ofegante e suada não lhes dissesse respeito, duas espécies distintas de animais que se evitavam...".
"Very british", poderia alguém dizer. Está sempre em curso uma verdadeira ciência da discrição, da privacidade, da indiferença. Mais do que tudo, a percepção milimétrica das diferenças de classe, das hierarquias intelectuais, das gradações aristocráticas.
Nas festas que Canetti frequenta, ocorre uma coisa curiosa, uma espécie de ultraesnobismo.
As pessoas mais célebres não se dão a conhecer; as pessoas que conhecem pessoas famosas fazem questão de não se vangloriar do fato diretamente. Assim, você podia ficar 20 minutos ouvindo alguém contar banalidades a respeito de "Bertie" sem saber que se estava falando de Bertrand Russell.
Canetti acabou conhecendo o famoso filósofo. Admira sua velocidade intelectual e a perfeição de suas frases, mas não resiste a fazer uma observação desagradável.
Para ele, Russell "terminava sua fala com a risada de um bode, tão selvagem e perigosa que chegava a ser assustadora (...) todo o animalesco de sua natureza estava contido nessa risada, um sátiro, embora pequenino, extremamente impetuoso e incansável".
Isso não é nada perto do que Canetti diz de T.S. Eliot, um sujeito "abissalmente mau".
Sobre a escritora Iris Murdoch, que foi sua namorada, Canetti escreve: "Creio que não há nada que me deixe mais indiferente do que a mente dessa pessoa".
Uma galeria de nobres malucos, avarentos, ornitólogos, caçadores de fantasmas, vai criando uma Inglaterra tão estranha quanto a mente do próprio Canetti, que gosta de descobrir, sob as convenções educadíssimas dos seus anfitriões, os impulsos brutais que ele próprio controla mal. O pior, lamenta Canetti, é que esse país foi destruído por Margaret Thatcher: "A Inglaterra decidiu saquear-se a si mesma".
Voltando à festa durante o bombardeio. Qualquer pessoa poderia se espantar com a indiferença daqueles intelectuais e aristocratas, enquanto bombeiros tentavam apagar o fogo nas casas vizinhas. Mas essa impressão estaria errada, continua Canetti, "porque o corpo de bombeiros daquela noite era composto por voluntários da própria rua, entre eles um ou outro jovem poeta que eu jamais teria reconhecido em tais esforços físicos".
De modo que indiferença e solidariedade, diversão e dever, não eram tão incompatíveis assim. Na velha discrição britânica, o bom e o ruim se ocultavam do mesmo jeito, o que não deixa de revelar uma espécie de espírito esportivo. É bem o contrário do Brasil, onde nada se oculta por muito tempo. E dizer que a Olimpíada vai ser só em 2016.

coelhofsp@uol.com.br


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