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ARNALDO JABOR
No Brasil, todos os cínicos são inocentes
°- Não.
- Como "não"? Eu ainda não
lhe perguntei nada...
- Mas é "não" mesmo.
- O senhor não reconhece sua
assinatura nesse cheque de R$ 20
milhões enviado para a conta do
governador?
- Não. A assinatura parece minha, sei que o teste grafológico em
Campinas prova que essa assinatura é minha, mas... não é. Quem
me garante que o grafólogo não é
comprado por meus concorrentes? Minha empresa constrói os
viadutos, aeroportos, represas do
Estado do meu querido governador, mas, se ele me delega as
obras, é por amizade... Ele é meu
amigo! O senhor é um frio jornalista... Não sabe o que é o amor...
- Tudo bem, mas o cheque é de
sua empresa... Está aqui o nome,
número do banco...
- Não é da minha empresa...
- O senhor não é dono da CAG
(Construtores Associados Gurupi)?
- Não me lembro...
- Mas o senhor esqueceu o nome
de sua empresa?
- Essa é apenas uma subsidiária
que já fez parte da holding e não
faz mais; ela só existe em nome de
dona Silvaneide, viúva de meu
ex-sócio, que já tinha saído do
grupo quando, em circunstâncias
misteriosas, apareceu assassinado no motel Crazy Love e, mesmo
antes de morrer, que Deus o tenha, ele tinha transformado a
CAG em três sub-ramificações
com sede em Miami, a Ass & Hole
Inc., a Cock & Dick Participações
e a digital Shet.com, geridas por
uma nova holding em Barbados,
a Global Bussa Inc. Por isso dizer
se esse cheque é meu é tão difícil
quanto decifrar um código genético...
- Como o senhor passou de uma
casinha alugada e um Volks há
nove anos para ser dono desse império de negócios? Sua súbita riqueza coincide com a eleição e a
reeleição do seu amigo governador. Como explica o aumento de
97 mil por cento em seu patrimônio?
- Trabalho duro e sorte, meu filho...
- Um operário teria de trabalhar 3.300 anos, sem comer e sem
gastar, para ganhar o que o senhor acumulou em nove anos.
Como é possível?
- Sei lá... Por que tenho de lhe
dar satisfações?
- Imprensa... O senhor está sendo acusado...
- Acusações que eu nego. Mas,
afinal de contas..., você quer provar o quê, rapaz?
- A verdade!
- Mas o que é a "verdade"? Ah...
Quer saber? Tudo bem, porra, vou
desabafar... Vou lhe dizer, senhor
jornalista. Vocês pensam que vivem no mundo da "verdade", essa abstração moral, jurídica?...
Pois saiba que "o fabuloso está no
comércio", como escreveu Paul
Valéry, ou "fora do poder tudo é
ilusão", como dizia Lênin... Pensa
o quê, porra? Sou culto... Olhe
bem para mim. A verdade sou eu!
Eu estou no lugar da verdade, entre o poder e o comércio! Este país
foi feito assim, na vala entre o público e o privado. Não foi feito
com frases feitas, não... Há uma
dialética fina entre dinheiro público e cobiça privada, há uma
grandeza insuspeitada na apropriação indébita, florescem ricos
cogumelos na lama das maracutaias, esse canalzinho de esgoto
tem grande poder fertilizador. A
bosta não produz flores magníficas? O que vocês chamam de
"roubalheira" eu chamo de "progresso", um progresso português,
nada da frieza anglo-saxônica...
O excremento como motor da história... São Paulo foi construída
com esse combustível, os prédios
repousam sobre esses fundamentos... Brasília foi feita de lindas ladroagens... Tudo o que é belo e
bom nasceu da merda... Essa é a
verdade do Brasil, que vocês querem condenar, falando essas bobagens sobre moralidade. O resto
é ilusão.
- Mas... E o interesse público, o
império da lei?
- Corta esses resíduos iluministas... Os que vocês chamam de
corruptos são os melhores homens
do país... Empreendedores, grandes "espadas" imaginosos, poetas
dos trambiques, carunchos da lei
vivendo nas brechas dos códigos,
homens que produzem o novo
contra a pasmaceira do bom-mocismo nacional...
- O senhor acha o golpe do TRT
um progresso?
- Vocês clamam contra o Lalau... Pois ele foi um inventor... Só
errou ao fugir... Devia ficar aqui,
abrigado nos tribunais... Como
um juiz esqueceu que a lei existe
para nos proteger? Vocês são uns
babacas... Acusam a mim, ao Lalau e não percebem que o golpe
isolado só serve para dissimular
um roubo muito mais geral: o crime da "normalidade". A ingenuidade de vossas denúncias dá a
sensação de transparência ao povo... Mas, no fundo, vocês nos legitimam; o roubo legal, normal,
permitido em lei, ninguém denuncia... Quanto mais vocês criticam a exceção, mais legitimam a
regra...
Só de INSS nós empresários devemos cerca de R$ 100 bilhões... A
indústria das liminares nos protege... O FGTS, quem recolhe?... E o
Imposto de Renda? Metade dos
bancos não paga... E vocês, românticos, bobos, atacando a nós,
ao Cacciola, ao Estevão...
- Mas, doutor... (o repórter já
hesitava, varado de dúvidas, trêmulo), há provas concretas contra
o senhor... O vídeo em que o senhor compra aquele senador...
Com diálogos, gargalhadas, entregando uma mala preta... Tudo
filmado... Foi ao ar na TV! Como
o senhor explica aquela cena gravada?...
- Já expliquei. Ensaio. Eu estava
ensaiando uma peça de teatro para meus funcionários na festa de
final de ano... Aquele senador que
conversa comigo, ele quer ser
ator... Acho ele até meio veado...
Mas é teatro... Sou dramaturgo...
Quando ele diz: "Aqui está a grana, na mala preta!" e eu respondo: "Oba, oh, admirável mundo
novo... O dinheiro é a mola da vida!", eu estou citando Shakespeare... É teatro, é arte... Entendeu?
(Falando baixo para evitar o gravador: "Tudo pode ser negado...
Ah, ah... É só dizer "não".)
- Então o senhor não fez nada?
- Não.
- E essas provas cabais, definitivas?...
- Olha, meu filho, provas não
provam nada. Sabe por quê? Eis a
minha mais profunda verdade:
eu não sou eu! Como disse Rimbaud: "Eu é um outro"... Sou culto...
- E como é seu nome então?
- Não me lembro.
- E como é então o nome do
"outro"?
- Não sei. Meu filho, desista, nós
não existimos. "A vida é a ilusão
dos sentidos", como disse...
- Quem?
- Leo Green, um grande filósofo
de Miami.
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