São Paulo, terça-feira, 28 de novembro de 2000

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ARNALDO JABOR
No Brasil, todos os cínicos são inocentes

°- Não.
- Como "não"? Eu ainda não lhe perguntei nada...
- Mas é "não" mesmo.
- O senhor não reconhece sua assinatura nesse cheque de R$ 20 milhões enviado para a conta do governador?
- Não. A assinatura parece minha, sei que o teste grafológico em Campinas prova que essa assinatura é minha, mas... não é. Quem me garante que o grafólogo não é comprado por meus concorrentes? Minha empresa constrói os viadutos, aeroportos, represas do Estado do meu querido governador, mas, se ele me delega as obras, é por amizade... Ele é meu amigo! O senhor é um frio jornalista... Não sabe o que é o amor...
- Tudo bem, mas o cheque é de sua empresa... Está aqui o nome, número do banco...
- Não é da minha empresa...
- O senhor não é dono da CAG (Construtores Associados Gurupi)?
- Não me lembro...
- Mas o senhor esqueceu o nome de sua empresa?
- Essa é apenas uma subsidiária que já fez parte da holding e não faz mais; ela só existe em nome de dona Silvaneide, viúva de meu ex-sócio, que já tinha saído do grupo quando, em circunstâncias misteriosas, apareceu assassinado no motel Crazy Love e, mesmo antes de morrer, que Deus o tenha, ele tinha transformado a CAG em três sub-ramificações com sede em Miami, a Ass & Hole Inc., a Cock & Dick Participações e a digital Shet.com, geridas por uma nova holding em Barbados, a Global Bussa Inc. Por isso dizer se esse cheque é meu é tão difícil quanto decifrar um código genético...
- Como o senhor passou de uma casinha alugada e um Volks há nove anos para ser dono desse império de negócios? Sua súbita riqueza coincide com a eleição e a reeleição do seu amigo governador. Como explica o aumento de 97 mil por cento em seu patrimônio?
- Trabalho duro e sorte, meu filho...
- Um operário teria de trabalhar 3.300 anos, sem comer e sem gastar, para ganhar o que o senhor acumulou em nove anos. Como é possível?
- Sei lá... Por que tenho de lhe dar satisfações?
- Imprensa... O senhor está sendo acusado...
- Acusações que eu nego. Mas, afinal de contas..., você quer provar o quê, rapaz?
- A verdade!
- Mas o que é a "verdade"? Ah... Quer saber? Tudo bem, porra, vou desabafar... Vou lhe dizer, senhor jornalista. Vocês pensam que vivem no mundo da "verdade", essa abstração moral, jurídica?... Pois saiba que "o fabuloso está no comércio", como escreveu Paul Valéry, ou "fora do poder tudo é ilusão", como dizia Lênin... Pensa o quê, porra? Sou culto... Olhe bem para mim. A verdade sou eu! Eu estou no lugar da verdade, entre o poder e o comércio! Este país foi feito assim, na vala entre o público e o privado. Não foi feito com frases feitas, não... Há uma dialética fina entre dinheiro público e cobiça privada, há uma grandeza insuspeitada na apropriação indébita, florescem ricos cogumelos na lama das maracutaias, esse canalzinho de esgoto tem grande poder fertilizador. A bosta não produz flores magníficas? O que vocês chamam de "roubalheira" eu chamo de "progresso", um progresso português, nada da frieza anglo-saxônica... O excremento como motor da história... São Paulo foi construída com esse combustível, os prédios repousam sobre esses fundamentos... Brasília foi feita de lindas ladroagens... Tudo o que é belo e bom nasceu da merda... Essa é a verdade do Brasil, que vocês querem condenar, falando essas bobagens sobre moralidade. O resto é ilusão.
- Mas... E o interesse público, o império da lei?
- Corta esses resíduos iluministas... Os que vocês chamam de corruptos são os melhores homens do país... Empreendedores, grandes "espadas" imaginosos, poetas dos trambiques, carunchos da lei vivendo nas brechas dos códigos, homens que produzem o novo contra a pasmaceira do bom-mocismo nacional...
- O senhor acha o golpe do TRT um progresso?
- Vocês clamam contra o Lalau... Pois ele foi um inventor... Só errou ao fugir... Devia ficar aqui, abrigado nos tribunais... Como um juiz esqueceu que a lei existe para nos proteger? Vocês são uns babacas... Acusam a mim, ao Lalau e não percebem que o golpe isolado só serve para dissimular um roubo muito mais geral: o crime da "normalidade". A ingenuidade de vossas denúncias dá a sensação de transparência ao povo... Mas, no fundo, vocês nos legitimam; o roubo legal, normal, permitido em lei, ninguém denuncia... Quanto mais vocês criticam a exceção, mais legitimam a regra...
Só de INSS nós empresários devemos cerca de R$ 100 bilhões... A indústria das liminares nos protege... O FGTS, quem recolhe?... E o Imposto de Renda? Metade dos bancos não paga... E vocês, românticos, bobos, atacando a nós, ao Cacciola, ao Estevão...
- Mas, doutor... (o repórter já hesitava, varado de dúvidas, trêmulo), há provas concretas contra o senhor... O vídeo em que o senhor compra aquele senador... Com diálogos, gargalhadas, entregando uma mala preta... Tudo filmado... Foi ao ar na TV! Como o senhor explica aquela cena gravada?...
- Já expliquei. Ensaio. Eu estava ensaiando uma peça de teatro para meus funcionários na festa de final de ano... Aquele senador que conversa comigo, ele quer ser ator... Acho ele até meio veado... Mas é teatro... Sou dramaturgo... Quando ele diz: "Aqui está a grana, na mala preta!" e eu respondo: "Oba, oh, admirável mundo novo... O dinheiro é a mola da vida!", eu estou citando Shakespeare... É teatro, é arte... Entendeu? (Falando baixo para evitar o gravador: "Tudo pode ser negado... Ah, ah... É só dizer "não".)
- Então o senhor não fez nada?
- Não.
- E essas provas cabais, definitivas?...
- Olha, meu filho, provas não provam nada. Sabe por quê? Eis a minha mais profunda verdade: eu não sou eu! Como disse Rimbaud: "Eu é um outro"... Sou culto...
- E como é seu nome então?
- Não me lembro.
- E como é então o nome do "outro"?
- Não sei. Meu filho, desista, nós não existimos. "A vida é a ilusão dos sentidos", como disse...
- Quem?
- Leo Green, um grande filósofo de Miami.


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