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CINEMA
Com uma obra povoada pelo signo da infância, diretor da ex-URSS ganha retrospectiva em SP com 11 filmes
Tarkovski modula o tempo e cria a imagem
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
A obra de Andrei Tarkovski
(1932-86), tema da mostra
no Cinesesc a propósito do lançamento de um pacote em DVD
com todos os seus filmes, começa
e termina com a mesma imagem:
uma criança ao pé de uma árvore.
Apenas o movimento se inverte:
vai do céu para a terra no primeiro plano do primeiro filme, "A Infância de Ivan", e da terra para o
céu no final do último filme, "O
Sacrifício". Natural de Belarus
(ex-URSS), Tarkovski ainda não
sabia que ia morrer quando rodou esse último plano. Depois, dirigindo a montagem do filme já
em seu leito de morte, com um
câncer fulminante, talvez se lembrasse do dia em que, numa sessão espírita, teria ouvido o espírito do escritor Boris Pasternak
anunciar-lhe que só faria sete filmes na vida. História contada por
Chris Marker em "Um Dia com
Andrei Arsenevitch".
Filmando os últimos dias de
Tarkovski, Marker, outro misterioso devoto dos enigmas do tempo, bem que poderia invocar a célebre frase inicial de seu clássico
"La Jetée": "Esta é a história de
um homem marcado por uma
imagem de sua infância". Longe
de sua terra, Tarkovski, exilado,
mas não dissidente, reencontra,
ao pé de seu leito de morte, o filho,
liberado pelo regime soviético: ao
momento, Marker dá o peso de
uma "imagem-tempo", como se o
passado, o presente e o futuro de
Tarkovski se elucidassem ali, de
uma só vez.
"Imagem-tempo" é o conceito e
o nome de um livro do filósofo Gilles Deleuze que servem, de certa
forma, de corolário para a obra de
Tarkovski. Não que este precisasse: em "Esculpir o Tempo", o cineasta já esboçava sua própria
teoria. Para Tarkovski, o essencial
no cinema é o modo como o tempo flui (independente) dentro do
plano, é a pressão e a modulação
do tempo na cena. Essa imagem
direta do tempo, Deleuze consagra como própria ao cinema moderno do pós-guerra, como se,
por um desvio em sua evolução,
essa arte encontrasse enfim a sua
essência, encarando o fantasma
que sempre a habitara, o tempo.
Tarkovski não se via como moderno. Achava que a modernidade mutilara a alma das pessoas,
chamava-a "civilização da prótese". O objetivo da arte, assim, seria oferecer ao homem um alimento para o espírito, cultivar-lhe
a alma, prepará-lo para a morte.
Para ele, "um artista sem fé é como um pintor que nascesse cego".
É por isso que sua obra é povoada
pelos "iuródivii", típica figura
russa, misto de bobo alegre e louco visionário, cujo maior exemplo
é o Príncipe Míchkin de "O Idiota", de Dostoiévski, que Tarkovski por toda a vida sonhou adaptar.
É a vidência e a fé dos "iuródivii" -do personagem-título de
"Stalker" ao louco de "Nostalgia"- que os artistas, os personagens escritores nos filmes de Tarkovski almejam. Se não são crianças, preservam o espírito da infância, os sentidos alertas: fazendo dos "iuródivii" seus intercessores, Tarkovski tenta fixar o tempo em seus signos perceptíveis.
De "A infância de Ivan" (infância
vivida apenas em sonho) a "O Espelho", ele abandona todo e qualquer pretexto para evocar mais livremente a infância perdida.
Em Tarkovski, o travelling já
não é uma "questão de moral"
(como exigia Godard, nos anos
60) mas de metafísica. Inclui-se aí
a palavra "física": muito de acordo com a mística russa, Tarkovski
não dissocia espírito de matéria,
Deus e a natureza -crença cuja
figura-síntese é o oceano-Deus de
"Solaris". Nas grandes sequências
desse ex-geólogo há sempre um
embate entre os (quatro) elementos da natureza. Toda a primorosa
série culmina no plano-sequência
do incêndio de "O Sacrifício",
desfecho espantoso da obra de
um artista que sempre acreditou
que o ato de criação equivalia a
um ato de sacrifício.
RETROSPECTIVA TARKOVSKI. Onde:
Cinesesc (r. Augusta, 2.075, SP). Quando:
de hoje a 2/12. Programação e roteiros:
tel. 0/xx/11/3064-1668. Quanto: grátis.
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