São Paulo, segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Gafe e civilização

O "Folhetim" foi, durante cerca de uma década, o suplemento semanal de cultura da Folha. Editá-lo era a tal ponto uma mistura instável de prazer e exasperação que raros (entre os quais não estava este colunista) agüentavam fazê-lo por mais de um ano. Recompensas não faltavam: por exemplo, a possibilidade de ser o primeiro a descobrir e divulgar textos e autores relevantes, pôr determinados conceitos em circulação antes dos competidores, influenciar a pauta daquilo que os formadores de opinião discutiriam nos próximos dias ou semanas.
No que diz respeito ao desgaste, talvez sua principal fonte fosse atuar como interface entre meios de comunicação de massa e a intelectualidade acadêmica, entre jornal e universidade, algo que, aliás, justifica a existência de cadernos "high brow", às vezes esotéricos demais para muitos leitores. Pois, por um lado, a intelectualidade deseja amiúde se dirigir a uma audiência maior que a das salas de aula, mais imediata que a dos freqüentadores de obras especializadas. Por outro, um jornal se beneficia ao colocar à disposição do público, além do noticiário, ensaios densos e complexos que o inspirem ou ajudem a pensar. Idéias, afinal, também são notícia.
Quem, todavia, desempenhe o papel de interface, tentando erguer pontes que, transitáveis, liguem instituições, ambientes e pessoas de naturezas distintas, acaba servindo de mediador num conflito que, não obstante sua baixa intensidade, é perpétuo, arquetípico, e se sente, portanto, obrigado a explicar ou, pior, defender as características de um dos lados perante o oposto. Correndo o risco de ser considerado um "traidor" por ambos, um servo de dois amos rivais, convive esquizofrenicamente na prática com ritmos desiguais de produção, com rotinas quase antagônicas de trabalho, com pressupostos, objetivos e expectativas não coincidentes. E, cada vez que tal empenho de harmonização fracassa, adivinhem quem é que paga pelos desencontros...
O suplemento costumava reservar sua contracapa para a poesia (original ou traduzida) e, tendo em vista que esta nem é uma das dez atividades favoritas do país, nem seus mais altos praticantes nacionais beiravam o fundo que fosse da lista dos livros mais vendidos, não deixa de surpreender que o número de voluntários à página derradeira sempre superasse o de todos os demais. Se artigos banais sobre filosofia ou história tinham, amiúde, de ser arrancados a fórceps, o assédio de poetas veteranos, principiantes e amadores mal poderia ser contido por vidros à prova de balas, guarda-costas truculentos, secretárias humanas e/ou eletrônicas.
Para agravar a situação, se ocorresse que, digamos, uma sumidade qualquer, um catedrático de direito ou economia, tivesse oferecido um "paper" sobre temas de sua especialidade e esse fora rejeitado, ele o encaminhava, sem rancor ou mágoa excessiva, a outra publicação. Mas, se um desses catedráticos ou, quem sabe, até um Nobel de física, química, medicina enviasse à Redação seu soneto piegas de pés quebrados, sua trova amorosa saturada de lugares-comuns embaraçosos e rimas pobres, sua balada de protesto com mais palavras de ordem que arte ou coerência, e caso esse tour acidental e acidentado pelas escarpas do Parnaso viesse (com a boa intenção de poupar ao autor constrangimentos vindouros) a lhe ser gentilmente desaconselhado, então o responsável, ferindo suscetibilidades insuspeitadas, conquistava uma inimizade duradoura.
Já um Drummond e um João Cabral (se bem que não a média de nossos atuais bardos médios) provavelmente reagiriam com indiferença, se não com humor, a rejeições similares. Assim, quando perguntei a um poeta de verdade (e que depois ganharia o Nobel literário, premiação que, na época, melhorou a reputação da Academia Sueca) sobre as razões pelas quais, numa reedição recente, eliminara os dois versos finais (que me agradavam) de um poema seu, ele se desculpou honestamente: "Porque eram ruins".
Thomas Mann, nos contos de juventude, dissecou impiedoso a mescla de fascínio sincero e falta ignorada seja de talento, seja de aprendizado, que leva um diletante inteligente, aventurando-se por territórios dos quais a autocensura sóbria recomendaria distância, a se cobrir de ridículo num lapso desnecessário e evitável. Equívocos tais em geral decorrem de uma paixão não de todo correspondida pelas obras criativas, paixão esta que induz ótimos leitores (ou ouvintes, espectadores etc.) a supor que sua própria intensidade substitui a experiência ou treino que tomariam como pré-requisitos mínimos nas respectivas profissões.
E, embora se saiba que, numa era complacente como a nossa, um "faux-pas" estético não carrega mais consigo sanções tão onerosas como as de antigamente, tampouco é difícil constatar que, envolvendo "mistérios" ancestrais, apartando iniciados de leigos, remetendo obscuramente a inseguranças relacionadas com o intelecto, o berço, a auto-estima e Deus sabe mais o quê (ou como), as questões de gosto, longe de terem sido eclipsadas pelas sérias ou rigorosas, preservam intacta sua latência ameaçadora.
Poucos são capazes de perder com graça uma argumentação objetiva, nem são tantos os que se mantêm impassíveis tão logo percebem (ou se por desgraça lhes for apontado) que cometeram deslizes de lógica ou informação. O pavor de trair um gosto duvidoso basta, no entanto, para tornar circunspecto o mais loquaz dos exibicionistas, se não na primeira ou segunda, decerto lá pela terceira gafe. Cruel? Sem dúvida e, por isso mesmo, essa é a prova cabal de que ainda vivemos numa sociedade civilizada.

Texto Anterior: Quadrinhos: Cartunistas passam dos blogs para os livros
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema 1: "Cidade Baixa" vence festival de Huelva
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.