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NELSON ASCHER
Gafe e civilização
O "Folhetim" foi, durante
cerca de uma década, o suplemento semanal de cultura da
Folha. Editá-lo era a tal ponto
uma mistura instável de prazer e
exasperação que raros (entre os
quais não estava este colunista)
agüentavam fazê-lo por mais de
um ano. Recompensas não faltavam: por exemplo, a possibilidade de ser o primeiro a descobrir e
divulgar textos e autores relevantes, pôr determinados conceitos
em circulação antes dos competidores, influenciar a pauta daquilo que os formadores de opinião
discutiriam nos próximos dias ou
semanas.
No que diz respeito ao desgaste,
talvez sua principal fonte fosse
atuar como interface entre meios
de comunicação de massa e a intelectualidade acadêmica, entre
jornal e universidade, algo que,
aliás, justifica a existência de cadernos "high brow", às vezes esotéricos demais para muitos leitores. Pois, por um lado, a intelectualidade deseja amiúde se dirigir a uma audiência maior que a
das salas de aula, mais imediata
que a dos freqüentadores de
obras especializadas. Por outro,
um jornal se beneficia ao colocar
à disposição do público, além do
noticiário, ensaios densos e complexos que o inspirem ou ajudem
a pensar. Idéias, afinal, também
são notícia.
Quem, todavia, desempenhe o
papel de interface, tentando erguer pontes que, transitáveis, liguem instituições, ambientes e
pessoas de naturezas distintas,
acaba servindo de mediador num
conflito que, não obstante sua
baixa intensidade, é perpétuo, arquetípico, e se sente, portanto,
obrigado a explicar ou, pior, defender as características de um
dos lados perante o oposto. Correndo o risco de ser considerado
um "traidor" por ambos, um servo de dois amos rivais, convive
esquizofrenicamente na prática
com ritmos desiguais de produção, com rotinas quase antagônicas de trabalho, com pressupostos, objetivos e expectativas não
coincidentes. E, cada vez que tal
empenho de harmonização fracassa, adivinhem quem é que paga pelos desencontros...
O suplemento costumava reservar sua contracapa para a poesia
(original ou traduzida) e, tendo
em vista que esta nem é uma das
dez atividades favoritas do país,
nem seus mais altos praticantes
nacionais beiravam o fundo que
fosse da lista dos livros mais vendidos, não deixa de surpreender
que o número de voluntários à
página derradeira sempre superasse o de todos os demais. Se artigos banais sobre filosofia ou história tinham, amiúde, de ser arrancados a fórceps, o assédio de
poetas veteranos, principiantes e
amadores mal poderia ser contido por vidros à prova de balas,
guarda-costas truculentos, secretárias humanas e/ou eletrônicas.
Para agravar a situação, se
ocorresse que, digamos, uma sumidade qualquer, um catedrático
de direito ou economia, tivesse
oferecido um "paper" sobre temas de sua especialidade e esse
fora rejeitado, ele o encaminhava, sem rancor ou mágoa excessiva, a outra publicação. Mas, se
um desses catedráticos ou, quem
sabe, até um Nobel de física, química, medicina enviasse à Redação seu soneto piegas de pés quebrados, sua trova amorosa saturada de lugares-comuns embaraçosos e rimas pobres, sua balada
de protesto com mais palavras de
ordem que arte ou coerência, e
caso esse tour acidental e acidentado pelas escarpas do Parnaso
viesse (com a boa intenção de
poupar ao autor constrangimentos vindouros) a lhe ser gentilmente desaconselhado, então o
responsável, ferindo suscetibilidades insuspeitadas, conquistava
uma inimizade duradoura.
Já um Drummond e um João
Cabral (se bem que não a média
de nossos atuais bardos médios)
provavelmente reagiriam com indiferença, se não com humor, a
rejeições similares. Assim, quando perguntei a um poeta de verdade (e que depois ganharia o
Nobel literário, premiação que,
na época, melhorou a reputação
da Academia Sueca) sobre as razões pelas quais, numa reedição
recente, eliminara os dois versos
finais (que me agradavam) de
um poema seu, ele se desculpou
honestamente: "Porque eram
ruins".
Thomas Mann, nos contos de
juventude, dissecou impiedoso a
mescla de fascínio sincero e falta
ignorada seja de talento, seja de
aprendizado, que leva um diletante inteligente, aventurando-se
por territórios dos quais a autocensura sóbria recomendaria distância, a se cobrir de ridículo
num lapso desnecessário e evitável. Equívocos tais em geral decorrem de uma paixão não de todo correspondida pelas obras
criativas, paixão esta que induz
ótimos leitores (ou ouvintes, espectadores etc.) a supor que sua
própria intensidade substitui a
experiência ou treino que tomariam como pré-requisitos mínimos nas respectivas profissões.
E, embora se saiba que, numa
era complacente como a nossa,
um "faux-pas" estético não carrega mais consigo sanções tão onerosas como as de antigamente,
tampouco é difícil constatar que,
envolvendo "mistérios" ancestrais, apartando iniciados de leigos, remetendo obscuramente a
inseguranças relacionadas com o
intelecto, o berço, a auto-estima e
Deus sabe mais o quê (ou como),
as questões de gosto, longe de terem sido eclipsadas pelas sérias
ou rigorosas, preservam intacta
sua latência ameaçadora.
Poucos são capazes de perder
com graça uma argumentação
objetiva, nem são tantos os que se
mantêm impassíveis tão logo percebem (ou se por desgraça lhes for
apontado) que cometeram deslizes de lógica ou informação. O
pavor de trair um gosto duvidoso
basta, no entanto, para tornar
circunspecto o mais loquaz dos
exibicionistas, se não na primeira
ou segunda, decerto lá pela terceira gafe. Cruel? Sem dúvida e,
por isso mesmo, essa é a prova cabal de que ainda vivemos numa
sociedade civilizada.
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