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Réplica
A maior violência contra a arte é querer falar dela sem ela
A artista Laura Vinci rebate críticas de Ferreira Gullar à sua instalação "Ainda Viva'; segundo ela, poeta desconhece a obra
LAURA VINCI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A vontade de pôr em discussão a arte contemporânea, vista como
uma espécie de aberração por
alguns críticos, seguidos por alguns jornalistas, produziu uma
curiosa aberração: defensores
da arte falam da arte sem ver a
arte, e sem nenhum pudor.
No caso, o meu trabalho
"Ainda Viva", que ficou exposto
na galeria Nara Roesler durante 40 dias, foi criticado pelo jornalista Luciano Trigo em um
artigo intitulado "É de fama e
dinheiro que se trata a arte?"
(Ilustrada em 19/11).
O poeta e crítico Ferreira
Gullar, já citado por Trigo, permitiu-se citar a mesma instalação respondendo a uma enquete sobre o tema do "feio" na arte, no jornal "O Estado de São
Paulo" de 24 de novembro.
A única coisa que Gullar sabe
sobre o trabalho é que nele
existem "300 maçãs" expostas
ao apodrecimento, o que lhe
pareceu suficiente para tecer
considerações ácidas sobre a
obra e o estado geral da arte.
Imagino então se ele soubesse que não são 300, mas 7.000
maçãs. Se ele visse que mesmo
assim, numa dimensão de Ceasa, uma maçã é uma maçã que
sempre lembrará Cézanne.
Que postas numa superfície de
mármore, que tem a dignidade
do altar, da lápide e da tela
branca, elas estão ali falando da
tradição da natureza-morta na
pintura. Que elas apodrecem
em conjunto sem perder a beleza e exalando um perfume
embriagante. Talvez ele se lembrasse que "natureza-morta"
se diz em inglês "still life", vida
parada, ou ainda vida. Que isso
é uma pergunta sobre o destino
da arte, e não uma confusão da
arte com o lixo. Talvez ele se
lembrasse que é poeta. Que o
problema que ele vê na instalação, sem vê-la, é justamente o
que ela está problematizando.
Se ele olhasse mais adiante,
veria ainda uma coluna de peças de vidro pendendo do teto,
e chegando quase até o chão,
sem chegar a tocá-lo. Independente do que ele achasse dela,
veria que é difícil descrevê-la.
Essas peças estão intactas na linha dos tiros reais que marcam
a parede dos fundos, convivendo com a violência real e virtual
que está no ar, como uma questão aberta a quem participa da
experiência de estar ali.
Talvez Ferreira Gullar se
surpreendesse, talvez detestasse ainda mais a arte contemporânea como um todo. Esse não
é o ponto. A maior violência
contra a arte, seja qual for, é a
de achar que se pode falar dela
sem ela, fingindo que está falando dela. Ninguém tem o direito de declarar que não gosta
do "Poema Sujo", de Gullar,
sem lê-lo, porque não gosta,
por exemplo, de "arte suja". E
de autorizar jornalistas a achar
que podem fazê-lo também.
Mas, e se Ferreira Gullar se
entusiasmasse e, para surpresa
geral, quisesse comprar o trabalho? Aí perceberia que ele é
não é facilmente comprável,
não por causa de um preço,
mas porque não se insere com
facilidade, pela sua natureza,
no mercado do qual faz parte.
Ao contrário do que sugere o título do artigo publicado pela
Folha.
LAURA VINCI é artista plástica
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