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Réplica
É do mundo que a arte contemporânea trata
MOACIR DOS ANJOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sob o pretexto imodesto
de discutir "os rumos da
arte contemporânea", o
sr. Luciano Trigo condensa, em
artigo publicado na Ilustrada
em 19/11 ("É de fama e dinheiro que se trata a arte?"), um número significativo de equívocos e lugares-comuns sobre as
artes visuais. Por ser exemplar
de outras manifestações semelhantes e recentes em jornais e
revistas do país -em seu conteúdo simplista e em sua arrogância formal-, julgo ser necessário tecer alguns comentários sobre o referido texto.
O autor se apóia, para formular seu juízo depreciativo sobre
a arte contemporânea, em uma
caracterização pueril do processo de atribuição de valor à
produção recente das artes visuais, em que artistas corrompidos subordinariam seu trabalho à obtenção de inserção
dócil no "sistema" mercantil.
Para o sr. Trigo, isso se deveria ao fato de os artistas há
muito terem dado as costas para críticos íntegros capazes de
identificar o "valor intrínseco"
do que produzem (e aqui os nomes por ele invocados não poderiam ser outros senão os de
Affonso Romano de Sant'Anna
e Ferreira Gullar, notórios detratores da arte atual), aliando-se a curadores e galeristas empenhados em construir "fama"
e garantir "sucesso" financeiro.
Preguiça intelectual
Sem desconhecer que existem artistas, curadores e galeristas inescrupulosos, assim
como existem profissionais
corruptos em quaisquer áreas
de atuação (seja a advocacia, o
jornalismo, a política ou o sacerdócio), a generalização proposta em seu artigo só se justifica por preguiça intelectual ou
por má-fé dissimulada.
O articulista esquiva-se, portanto, de modo grosseiro (em
ao menos dois sentidos da palavra), de buscar entender os
complexos mecanismos de valoração simbólica e monetária
da arte contemporânea, fundados no conflito irresoluto entre
instituições diversas, tais como
a mídia, as universidades, os
museus e as galerias.
Conflito que gera, através de
intervenções legitimamente
interessadas dos representantes daquelas instituições -críticos, historiadores, curadores,
galeristas-, convenções instáveis sobre qualidade e preço de
obras, as quais, por sua própria
natureza, estão fadadas a serem
recorrentemente rompidas e
substituídas por mais outras.
Ao contrário do que o autor
sugere, é do atrito constante
entre juízos distintos que se
constroem, a cada momento,
acordos sobre o que é ou não é
arte e sobre os valores com que
as produções simbólicas circulam no mundo da riqueza, inapelavelmente satisfazendo alguns e frustrando outros.
A recusa em reconhecer a
impossibilidade de atribuir valores inequívocos e estáveis a
um trabalho de arte no mundo
contemporâneo -definidos, de
preferência, por críticos que
partilham a sua visão de mundo- faz com que o sr. Trigo se
conceda o direito de aplacar a
sua legítima discordância do
reconhecimento social detido
por artistas contemporâneos
(quer em termos simbólicos,
quer em termos monetários)
atribuindo-lhes, de modo vulgar, um comportamento supostamente venal.
A determinação do autor do
texto em desqualificar a produção recente em artes visuais leva-o, ainda, a associar as criações dos artistas contemporâneas a repetições descontextualizadas do que foi já feito pelos "movimentos de vanguarda
do século 20". Tais trabalhos
seriam pouco mais, em sua visão, do que o fruto do esforço
ultrapassado de "chocar" as
pessoas, constituindo-se em
componentes de uma estratégia "desesperada" de destacar-se frente a potenciais competidores e de ganhar maior espaço
de mercado. Por estarem desconectadas de seu tempo, as
obras feitas por esses artistas
seriam auto-referentes e incapazes, por isso, de articularem-se às questões culturais e sociais da contemporaneidade,
tal como fizeram, em sua época,
os ... "movimentos de vanguarda do século 20".
Fora de contexto
Para além da contradição do
argumento utilizado, em que
uma presumida vinculação da
arte contemporânea com os
tais movimentos de vanguarda
é ora denunciada como "empulhação" e ora cobrada como
pertinente, o que mais chama a
atenção aqui é a incapacidade
do sr. Trigo em notar a maneira
como a produção artística atual
vincula-se criticamente ao
tempo e ao lugar onde foi criada: não somente por meio da
representação de um contexto
específico (cultural, político,
social, econômico), mas também evocando esse contexto na
própria materialidade com que
se apresenta ao mundo.
Incapacidade que impede o
autor de considerar o roçar entre maçãs vermelhas perecíveis
e a solidez branca e esculpida
do mármore (parte do trabalho
de Laura Vinci recentemente
exposto na galeria Nara Roesler) como locução simbólica do
momento e do espaço em que
vivemos. Assim como o inibe a
ponderar que um quebra-molas construído de paçoca, matéria que desmorona mesmo ao
contato físico mais delicado
(instalação de Débora Bolsoni
ainda exposta no Museu de Arte Moderna), pode muito dizer
sobre a fragilidade do ambiente
social que nos acomoda.
Que fique claro, entretanto,
que a questão aqui posta não é a
de cobrar adesão do articulista
a essas obras, mas a de abrir-se
a elas tal como elas se abrem ao
mundo. Ainda que o autor do
texto continuasse a não partilhar aquilo que é evocado por
esses e tantos outros trabalhos
contemporâneos; e ainda que
contraditasse os modos como
esses sentimentos de estar no
mundo são neles enunciados. O
fundamental, ao fim e ao cabo,
é apenas não buscar medi-los e
julgá-los com o metro e as razões que não lhes cabe mais e
não lhes entendem o bastante.
Por fim, e ao contrário do que
o sr. Trigo afirma na primeira
frase de seu texto, as exposições a que se refere e sobre as
quais tece comentários críticos
estiveram ou estão em cartaz
apenas em São Paulo, o que lança dúvidas acerca do articulista
ter-se dado ao trabalho, ao menos, de ver in loco as instalações comentadas. Ou se, como
já havia decidido de antemão
que as obras de Laura Vinci e
Débora Bolsoni eram destinadas tão somente a "trazer fama,
viagem e dinheiro" a suas autoras, não seriam sequer dignas
de um olhar atento antes de
desqualificá-las do modo desrespeitoso como o faz.
MOACIR DOS ANJOS é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e curador de "Contraditório
-Panorama da Arte Brasileira", exposição em
cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo
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