São Paulo, quarta-feira, 28 de novembro de 2007

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Réplica

É do mundo que a arte contemporânea trata

MOACIR DOS ANJOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sob o pretexto imodesto de discutir "os rumos da arte contemporânea", o sr. Luciano Trigo condensa, em artigo publicado na Ilustrada em 19/11 ("É de fama e dinheiro que se trata a arte?"), um número significativo de equívocos e lugares-comuns sobre as artes visuais. Por ser exemplar de outras manifestações semelhantes e recentes em jornais e revistas do país -em seu conteúdo simplista e em sua arrogância formal-, julgo ser necessário tecer alguns comentários sobre o referido texto. O autor se apóia, para formular seu juízo depreciativo sobre a arte contemporânea, em uma caracterização pueril do processo de atribuição de valor à produção recente das artes visuais, em que artistas corrompidos subordinariam seu trabalho à obtenção de inserção dócil no "sistema" mercantil.
Para o sr. Trigo, isso se deveria ao fato de os artistas há muito terem dado as costas para críticos íntegros capazes de identificar o "valor intrínseco" do que produzem (e aqui os nomes por ele invocados não poderiam ser outros senão os de Affonso Romano de Sant'Anna e Ferreira Gullar, notórios detratores da arte atual), aliando-se a curadores e galeristas empenhados em construir "fama" e garantir "sucesso" financeiro.

Preguiça intelectual
Sem desconhecer que existem artistas, curadores e galeristas inescrupulosos, assim como existem profissionais corruptos em quaisquer áreas de atuação (seja a advocacia, o jornalismo, a política ou o sacerdócio), a generalização proposta em seu artigo só se justifica por preguiça intelectual ou por má-fé dissimulada.
O articulista esquiva-se, portanto, de modo grosseiro (em ao menos dois sentidos da palavra), de buscar entender os complexos mecanismos de valoração simbólica e monetária da arte contemporânea, fundados no conflito irresoluto entre instituições diversas, tais como a mídia, as universidades, os museus e as galerias.
Conflito que gera, através de intervenções legitimamente interessadas dos representantes daquelas instituições -críticos, historiadores, curadores, galeristas-, convenções instáveis sobre qualidade e preço de obras, as quais, por sua própria natureza, estão fadadas a serem recorrentemente rompidas e substituídas por mais outras.
Ao contrário do que o autor sugere, é do atrito constante entre juízos distintos que se constroem, a cada momento, acordos sobre o que é ou não é arte e sobre os valores com que as produções simbólicas circulam no mundo da riqueza, inapelavelmente satisfazendo alguns e frustrando outros.
A recusa em reconhecer a impossibilidade de atribuir valores inequívocos e estáveis a um trabalho de arte no mundo contemporâneo -definidos, de preferência, por críticos que partilham a sua visão de mundo- faz com que o sr. Trigo se conceda o direito de aplacar a sua legítima discordância do reconhecimento social detido por artistas contemporâneos (quer em termos simbólicos, quer em termos monetários) atribuindo-lhes, de modo vulgar, um comportamento supostamente venal.
A determinação do autor do texto em desqualificar a produção recente em artes visuais leva-o, ainda, a associar as criações dos artistas contemporâneas a repetições descontextualizadas do que foi já feito pelos "movimentos de vanguarda do século 20". Tais trabalhos seriam pouco mais, em sua visão, do que o fruto do esforço ultrapassado de "chocar" as pessoas, constituindo-se em componentes de uma estratégia "desesperada" de destacar-se frente a potenciais competidores e de ganhar maior espaço de mercado. Por estarem desconectadas de seu tempo, as obras feitas por esses artistas seriam auto-referentes e incapazes, por isso, de articularem-se às questões culturais e sociais da contemporaneidade, tal como fizeram, em sua época, os ... "movimentos de vanguarda do século 20".

Fora de contexto
Para além da contradição do argumento utilizado, em que uma presumida vinculação da arte contemporânea com os tais movimentos de vanguarda é ora denunciada como "empulhação" e ora cobrada como pertinente, o que mais chama a atenção aqui é a incapacidade do sr. Trigo em notar a maneira como a produção artística atual vincula-se criticamente ao tempo e ao lugar onde foi criada: não somente por meio da representação de um contexto específico (cultural, político, social, econômico), mas também evocando esse contexto na própria materialidade com que se apresenta ao mundo.
Incapacidade que impede o autor de considerar o roçar entre maçãs vermelhas perecíveis e a solidez branca e esculpida do mármore (parte do trabalho de Laura Vinci recentemente exposto na galeria Nara Roesler) como locução simbólica do momento e do espaço em que vivemos. Assim como o inibe a ponderar que um quebra-molas construído de paçoca, matéria que desmorona mesmo ao contato físico mais delicado (instalação de Débora Bolsoni ainda exposta no Museu de Arte Moderna), pode muito dizer sobre a fragilidade do ambiente social que nos acomoda.
Que fique claro, entretanto, que a questão aqui posta não é a de cobrar adesão do articulista a essas obras, mas a de abrir-se a elas tal como elas se abrem ao mundo. Ainda que o autor do texto continuasse a não partilhar aquilo que é evocado por esses e tantos outros trabalhos contemporâneos; e ainda que contraditasse os modos como esses sentimentos de estar no mundo são neles enunciados. O fundamental, ao fim e ao cabo, é apenas não buscar medi-los e julgá-los com o metro e as razões que não lhes cabe mais e não lhes entendem o bastante.
Por fim, e ao contrário do que o sr. Trigo afirma na primeira frase de seu texto, as exposições a que se refere e sobre as quais tece comentários críticos estiveram ou estão em cartaz apenas em São Paulo, o que lança dúvidas acerca do articulista ter-se dado ao trabalho, ao menos, de ver in loco as instalações comentadas. Ou se, como já havia decidido de antemão que as obras de Laura Vinci e Débora Bolsoni eram destinadas tão somente a "trazer fama, viagem e dinheiro" a suas autoras, não seriam sequer dignas de um olhar atento antes de desqualificá-las do modo desrespeitoso como o faz.


MOACIR DOS ANJOS é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e curador de "Contraditório -Panorama da Arte Brasileira", exposição em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo

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