|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
comentário
Realidade dos kaiowás é pior do que a ficção
CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA
Um grupo de índios kaiowás miseráveis, acampado
na beira de uma estrada em
Mato Grosso do Sul, olha
através de uma cerca de arame farpado para sua terra
tradicional ("tekoha"), ocupada e desmatada por um fazendeiro. Não, não estou
descrevendo uma cena de
"Terra Vermelha", mas uma
outra, idêntica, que presenciei em janeiro de 1997, durante o processo de retomada da aldeia de Sucuriy, em
Maracaju. Assistir ao filme
de Marco Bechis foi como fazer uma viagem no tempo.
Uma das maiores forças de
"Terra Vermelha" é essa: fazer um retrato ficcional da
situação dos kaiowás sem
quase nada exagerar ou excluir da realidade. Uma realidade que é, se algo, ainda
mais estranha que a ficção.
Bechis nos deu suicídios, a
tragédia pela qual os kaiowás
eram mais conhecidos do
resto do Brasil até pouco
tempo atrás. Mas poupou-nos de outras cenas chocantes do cotidiano do grupo,
como a de índios revirando o
lixão de Dourados e a das
mortes de dezenas de bebês
por desnutrição, um dos dramas guaranis mais recentes.
Quem diz que há muita
terra para pouco índio no
Brasil deveria passear pelo
sul de MS, onde um território tradicional de mais de 6
milhões de hectares foi retalhado em "ilhas" com no máximo algumas centenas de
hectares cada uma.
Nelas espremem-se 30 mil
índios de dois grupos guaranis (kaiowás e ñandevas),
além de terenas trazidos pela
Funai para "civilizar" os guaranis e ensiná-los a plantar
nas terras que lhes restam,
desmatadas pelo próprio poder público. Sem a floresta
que lhes vale o etnônimo (a
palavra vem de "caagüigüá",
ou "aquele que vive dentro
do mato"), resta aos kaiowás
venderem sua força de trabalho como bóias-frias, empregadas domésticas ou peões
de fazenda. E flecharem as
vacas, uma das alegorias perfeitas do filme de Bechis.
A retomada do "tekoha",
fato a partir do qual o filme se
desenrola, é um movimento
que vem se intensificando
em MS. E que encontra cada
vez mais resistências do
agronegócio à medida que a
fome chinesa por soja e a sede brasileira por etanol elevam o preço da terra no Estado. O conflito já recrudesce.
Num momento em que o
STF se prepara para seu voto
histórico na questão indígena, seria uma boa organizar
algumas exibições de "Terra
Vermelha" em Brasília.
Texto Anterior: Crítica/"Terra Vermelha" e "Garage Olimpo": Filme lança olhar ambíguo sobre índios Próximo Texto: Crítica/teatro: "O Quarto" é experimentação bela e radical com obra de Pinter Índice
|