São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2008

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comentário

Realidade dos kaiowás é pior do que a ficção

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Um grupo de índios kaiowás miseráveis, acampado na beira de uma estrada em Mato Grosso do Sul, olha através de uma cerca de arame farpado para sua terra tradicional ("tekoha"), ocupada e desmatada por um fazendeiro. Não, não estou descrevendo uma cena de "Terra Vermelha", mas uma outra, idêntica, que presenciei em janeiro de 1997, durante o processo de retomada da aldeia de Sucuriy, em Maracaju. Assistir ao filme de Marco Bechis foi como fazer uma viagem no tempo.
Uma das maiores forças de "Terra Vermelha" é essa: fazer um retrato ficcional da situação dos kaiowás sem quase nada exagerar ou excluir da realidade. Uma realidade que é, se algo, ainda mais estranha que a ficção.
Bechis nos deu suicídios, a tragédia pela qual os kaiowás eram mais conhecidos do resto do Brasil até pouco tempo atrás. Mas poupou-nos de outras cenas chocantes do cotidiano do grupo, como a de índios revirando o lixão de Dourados e a das mortes de dezenas de bebês por desnutrição, um dos dramas guaranis mais recentes.
Quem diz que há muita terra para pouco índio no Brasil deveria passear pelo sul de MS, onde um território tradicional de mais de 6 milhões de hectares foi retalhado em "ilhas" com no máximo algumas centenas de hectares cada uma.
Nelas espremem-se 30 mil índios de dois grupos guaranis (kaiowás e ñandevas), além de terenas trazidos pela Funai para "civilizar" os guaranis e ensiná-los a plantar nas terras que lhes restam, desmatadas pelo próprio poder público. Sem a floresta que lhes vale o etnônimo (a palavra vem de "caagüigüá", ou "aquele que vive dentro do mato"), resta aos kaiowás venderem sua força de trabalho como bóias-frias, empregadas domésticas ou peões de fazenda. E flecharem as vacas, uma das alegorias perfeitas do filme de Bechis.
A retomada do "tekoha", fato a partir do qual o filme se desenrola, é um movimento que vem se intensificando em MS. E que encontra cada vez mais resistências do agronegócio à medida que a fome chinesa por soja e a sede brasileira por etanol elevam o preço da terra no Estado. O conflito já recrudesce. Num momento em que o STF se prepara para seu voto histórico na questão indígena, seria uma boa organizar algumas exibições de "Terra Vermelha" em Brasília.


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