São Paulo, sábado, 28 de novembro de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Nenhum lugar


Romance do português José Luís Peixoto aborda a angústia e a história de modo alegórico


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"UMA CASA na Escuridão" -um dos dez finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano- é o terceiro romance do português José Luís Peixoto publicado no Brasil. Cronologicamente, foi o segundo que escreveu, depois da estreia, com "Nenhum Olhar" (2000), e antes de "Cemitério de Pianos" (2006).
A sequência é importante para compreender as lentas mutações de um autor que trabalha sobre uma matéria-prima imutável: a agonia do tempo, seres sobrevivendo entre visitações de mortos que custam a desaparecer, uma escrita alegórica, na qual cada ação ganha um simbolismo para além da ação.
Se "Nenhum Olhar" fala de um universo estático, de uma paisagem calcinada pelo sol do Alentejo, que vai aprofundando o desespero de existências que giram em motocontínuo, "Cemitério de Pianos" se passa nos recessos mais estranhos de Lisboa, como a oficina de instrumentos na qual gerações de uma família repetem sua danação.
Entre um e outro, insere-se esse romance que se passa em lugar algum. Um jovem escritor, na casa dos 25 anos, habita uma casa coberta de hera, com uma escrava e com a mãe de "olhar bruto, analfabeto, despreocupado, desinteressado; um olhar quase irracional, a querer apenas comer e dormir".
A esse trio, imerso num silêncio arcaico, rodeado de gatos, somam-se os fantasmas do pai do narrador e da mãe da escrava, unidos por um trauma que parece atar o destino daqueles que ficaram.
Uma eventual leitura de "Uma Casa na Escuridão" pelo viés psicológico, todavia, esbarra na cadência torturada da prosa de Peixoto, em que as personagens surgem menos como seres com vida psíquica do que como entes enigmáticos e opacos, que irrompem na voz obsessiva do narrador.
Da mesma maneira, quando surge um certo "príncipe de calicatri", anunciando que "as invasões tinham chegado", o tempo histórico se introduz como uma alucinação apocalíptica e se materializa na forma de hordas de soldados que devassam a casa e seus habitantes.
A indeterminação é reforçada pela ironia, como na passagem em que se reconhece no protagonista o autor de "Nenhum Olhar", ou nas visitas que ele faz a um editor preso por ter sido "apanhado em flagrante a recusar o livro de um jovem escritor".
Se o humor intertextual confirma a percepção de que "o mundo inteiro era a memória confusa de uma coisa sonhada", o romance não cai no puro jogo mental graças à dor que emana da atmosfera "gótica" criada por Peixoto, cujo emblema é a figura feminina que o narrador descobre ser um cadáver dentro de si.
Como são cadáveres ambulantes, aliás, todas as personagens desse livro perturbador, que exuma a angústia num tempo avesso a crispações existenciais.


UMA CASA NA ESCURIDÃO

Autor: José Luís Peixoto
Editora: Record
Quanto: R$ 42,90 (304 págs.)
Avaliação: ótimo




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