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LIVRO/LANÇAMENTO
O multiplicador de opiniões
Vargas Llosa
Autor fala à Folha sobre futuro da literatura e presente da política, temas de livro de artigos que sai no Brasil
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CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Existem escritores que se casam
com a ficção e dividem cama, mesa e banho com a fantasia e a imaginação mais louca. E existem os
que desposam a realidade, e juntam seus trapos literários a tudo o
que é político, histórico e social.
Mario Vargas Llosa é um bígamo. Desde que surgiu no cenário
literário, no final dos anos 50, o
escritor fez um infinito zigue-zague entre criação e poder: do romance engajado a uma aventura
quase literária -e fracassada-
de tentar assumir a presidência de
seu país, o Peru, em 1990.
Nessa trajetória, esse ex-esquerdista, hoje liberal ferrenho, nunca
deixou de opinar. Em ensaios de
verve literária, Llosa comentou
desde a Guerra da Criméia ao
Carnaval brasileiro.
Uma amostra consistente dessa
atuação está disponível agora no
Brasil. O volume "A Linguagem
da Paixão", recém-lançado por
aqui pela editora Arx, reúne artigos escritos entre 1983 e 2000, para o diário espanhol "El País".
Aos 68 anos, o autor de "A
Guerra do Fim do Mundo" e
"Conversa na Catedral", entre
tantos outros que o credenciam
como um dos maiores narradores
da história da América Latina, interrompeu a correção das provas
de seu próximo romance, sobre a
feminista Flora Tristán, para falar
com a Folha sobre seus ensaios,
por telefone, de Lima, no Peru.
Leia trechos abaixo.
Folha - Um dos temas sobre os
quais o sr. trata no livro "A Linguagem da Paixão" é o futuro da literatura. O sr. afirma que a boa ficção
ficará cada vez mais restrita a um
enclave. O livro está condenado
eternamente às elites?
Mario Vargas Llosa - Espero que
não. Muitos defendem que com o
desenvolvimento dos meios audiovisuais e novas tecnologias o
livro vai perder audiência e ficar
relegado às margens da vida cultural. Se isso acontecer, viveremos
nosso maior empobrecimento.
Telas, sejam de que tipo, não têm
condições de substituir com êxito
o livro como produtor de grande
cultura. A literatura das telas será
superficial, como novelas de TV.
Folha - Mas o sr. acha que existe
risco de que o livro desapareça?
Llosa - Não creio. Não sou tão
pessimista como George Steiner,
por exemplo. Essa é uma escolha,
isso não está escrito e se acreditamos que o livro deve sobreviver e
coexistir com as telas, temos de
organizar uma educação em que
os livros sejam valorizados.
Folha - O sr. também afirma em
seu livro que os best sellers estragam os leitores. Que pensa o sr. de
um argumento comum segundo o
qual alguém que não leia pode encontrar a porta de entrada ao mundo do livro em Paulo Coelho?
Llosa - Houve uma época na história em que a grande literatura
era ao mesmo tempo a mais popular. É o século 19. Os grandes
dessa época, Victor Hugo e Dickens, são imensamente populares. No século 20 aconteceu o divórcio. Ganha força uma literatura popular que passa a ser uma
produção de segunda categoria. A
literatura de criação, por outro lado, migra a um público pequeno,
disposto a se esforçar. Não acho
que os casos se misturem hoje.
Folha - Nunca?
Llosa - Existem casos excepcionais, de livros ou escritores que
conseguem ser ao mesmo tempo
populares e enormemente criativos. Em espanhol, há "Cem Anos
de Solidão", de García Márquez.
Mas um grande escritor como
Guimarães Rosa ficará sempre
em um público minoritário, pois
exige um esforço intelectual como
o que pede um Joyce, um Proust.
Folha - O sr. escreve em "Linguagem da Paixão" que quando esteve
em Jerusalém, nos anos 70, teve a
percepção de que ficção e história
não são alérgicas uma à outra. Como o sr. vê uma produção literária
forte hoje que faz uma mescla desses elementos, caso do alemão
W.G. Sebald, do italiano Claudio
Magris, do espanhol Javier Cercas?
Llosa - Esta é uma pergunta interessante. Uma das manifestações
mais originais e atuais da literatura é essa que está muito mergulhada na história contemporânea,
mas que não renuncia à imaginação. Os autores mencionados me
parecem bem representativos de
uma literatura que penso ser muito de nossa época. Esta tendência
é excelente por que enriquece
uma literatura light que esteve
muito na moda nos anos 80 e 90.
Folha - O sr. critica o "light", mas
em seu livro também bate pesado
em uma literatura "heavy", a chamada pós-moderna. Por que o sr.
acha que ler um autor como Derrida é "total perda de tempo"?
Llosa - Sou muito interessado
por crítica, mas há um tipo de crítica que não me parece feita para
promover a literatura, mas para
provocar alergia a ela. Derrida me
parece o melhor exemplo. Faz
coisas obscurantistas, cheia de armadilhas, pretensiosas, mentirosas. Deveríamos romper com a
veneração ao incompreensível,
com a renúncia à estética.
Folha - Falando em estética, o sr.
afirma no livro que "hoje tudo pode ser arte e nada o é"...
Llosa - É que no mundo das artes
plásticas hoje desapareceram totalmente os cânones. Por sorte isso não aconteceu totalmente na literatura. Na arte não, não há nenhum tipo de consenso mínimo
entre o que é belo, o que é feio, o
que é novo, o que é velho. Hoje só
se valoriza o escândalo. Para mim
essa é a decadência completa das
artes plásticas contemporâneas.
Folha - Quais seriam os cânones
literários sobre os quais o sr. fala?
Llosa - Em literatura ainda é possível diferenciar por exemplo entre a poesia de um T.S. Eliot e certos jogos pós-modernistas.
Folha - E "Os Sertões", de Euclydes da Cunha? O livro no qual o sr.
se inspirou para fazer "A Guerra do
Fim do Mundo" e que acaba de
completar cem anos é um cânone?
Llosa - Sigo a reputando como
uma das obras-primas que já foram feitas no continente, um livro
fundamental para entender o que
é e o que não é a América Latina,
um manual ainda não superado
sobre nossos erros.
Folha - Os erros estão superados?
Llosa - Em boa parte eles estão
vivos. A prova é que seguimos nos
matando, que ainda temos sociedades fundadas no atraso. Talvez
exista hoje mais pobreza aqui do
que na época de "Os Sertões".
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