São Paulo, sábado, 28 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Controvérsia entre arte e economia degrada-se em lugar-comum

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Uma das discussões dos anos 60 que morreram sem terem sido devidamente exauridas é a que justapunha e/ou contrapunha os termos "arte" e "subdesenvolvimento".
Não que se tratasse de um debate ocioso, mas, como sucede sempre que a política militante está envolvida, as razões que emprestavam passionalidade a algo de caráter tão técnico, quase abstrato, raramente podiam ser inferidas pelos não-iniciados.
Por isso, convicções pouco justificadas e ainda menos meditadas seguem condicionando a abordagem de vários problemas. O vínculo entre a situação socioeconômica de um país e o caráter de sua produção artística deixou de ser uma controvérsia para se transformar num lugar-comum.
O resultado é uma visão hierárquica na qual as literaturas dos países desenvolvidos estão no topo, tornando ingênuo ao ponto do ridículo todo o esforço de autores oriundos de nações menos afortunadas. Um dos avatares recentes dessa idéia é o travesti conceitual chamado teoria pós-colonial. Não é à toa que seus partidários são em geral gente ligada às humanidades mais etéreas, sem muito trato com as ciências e tampouco apta a vôos matemáticos, altos ou baixos.
O prestígio das ciências naturais e de seus desdobramentos tecnológicos tem acarretado entre os praticantes das disciplinas humanísticas uma espécie de amor não correspondido que os leva, por um lado, a idealizar aquelas e, por outro, a identificar indevidamente a natureza dos objetos de ambos os ramos do saber.
Se há entre eles uma dissimilaridade capaz de gerar um sem-fim de equívocos, esta reside no aspecto cumulativo da ciência e do progresso tecnológico, um aspecto cuja presença se faz sentir de forma muito atenuada seja nas humanidades, seja nas artes.
O boeing pressupõe o teco-teco, e este o Ford modelo T e este a carroça de uma forma que, digamos, o "Ulisses" de James Joyce não pressupõe nem a obra de Flaubert, nem a "Odisséia" de Homero.
Por mais que o irlandês estabelecesse, ao escrever, relações tanto voluntárias quanto involuntárias com seus predecessores francês e grego, é possível se comparar o jato à carroça segundo alguma escala (a da velocidade, entre outras) que não tem paralelo na literatura. Comparado a "Madame Bovary" ou à história de Odisseu, a narrativa do dia de Leopold Bloom é mais (ou menos) o quê? Bonito, feio, verossímil, volumoso, rápido? A questão não tem cabimento.
Do mesmo modo, o desenvolvimento de um país é facilmente quantificável por meio de sua renda per capita ou seu índice de desenvolvimento humano. Que medida se aplica, porém, à literatura? Número de tomos, de páginas, de caracteres com ou sem espaço? Ela não se submete a medidas, só a juízos que vão dos subjetivos aos objetivos, passando pelos intersubjetivos.
Não há literatura subdesenvolvida porque não existe a desenvolvida. Como também não se pode, salvo metaforicamente, falar em romance ou poema tecnicamente avançado.
Não fosse assim, seria um paradoxo inexplicável o fato de que na América Latina se tenham escrito romances tão melhores do que na Escandinávia ou que, durante o século passado, tivessem surgido na Grécia agrária e ditatorial poetas muito superiores aos da Holanda industrial e democrática. Seja qual for a razão disso, ela nada tem a ver com a economia e, aliás, nem vale a pena tentar descobri-la.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Literatura: Matar ou morrer
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.