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RODAPÉ
Controvérsia entre arte e economia degrada-se em lugar-comum
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Uma das discussões dos anos
60 que morreram sem terem
sido devidamente exauridas é a
que justapunha e/ou contrapunha os termos "arte" e "subdesenvolvimento".
Não que se tratasse de um debate ocioso, mas, como sucede sempre que a política militante está
envolvida, as razões que emprestavam passionalidade a algo de
caráter tão técnico, quase abstrato, raramente podiam ser inferidas pelos não-iniciados.
Por isso, convicções pouco justificadas e ainda menos meditadas seguem condicionando a
abordagem de vários problemas.
O vínculo entre a situação socioeconômica de um país e o caráter
de sua produção artística deixou
de ser uma controvérsia para se
transformar num lugar-comum.
O resultado é uma visão hierárquica na qual as literaturas dos
países desenvolvidos estão no topo, tornando ingênuo ao ponto
do ridículo todo o esforço de autores oriundos de nações menos
afortunadas. Um dos avatares recentes dessa idéia é o travesti conceitual chamado teoria pós-colonial. Não é à toa que seus partidários são em geral gente ligada às
humanidades mais etéreas, sem
muito trato com as ciências e tampouco apta a vôos matemáticos,
altos ou baixos.
O prestígio das ciências naturais
e de seus desdobramentos tecnológicos tem acarretado entre os
praticantes das disciplinas humanísticas uma espécie de amor não
correspondido que os leva, por
um lado, a idealizar aquelas e, por
outro, a identificar indevidamente a natureza dos objetos de ambos os ramos do saber.
Se há entre eles uma dissimilaridade capaz de gerar um sem-fim
de equívocos, esta reside no aspecto cumulativo da ciência e do
progresso tecnológico, um aspecto cuja presença se faz sentir de
forma muito atenuada seja nas
humanidades, seja nas artes.
O boeing pressupõe o teco-teco,
e este o Ford modelo T e este a
carroça de uma forma que, digamos, o "Ulisses" de James Joyce
não pressupõe nem a obra de
Flaubert, nem a "Odisséia" de
Homero.
Por mais que o irlandês estabelecesse, ao escrever, relações tanto
voluntárias quanto involuntárias
com seus predecessores francês e
grego, é possível se comparar o jato à carroça segundo alguma escala (a da velocidade, entre outras) que não tem paralelo na literatura. Comparado a "Madame
Bovary" ou à história de Odisseu,
a narrativa do dia de Leopold
Bloom é mais (ou menos) o quê?
Bonito, feio, verossímil, volumoso, rápido? A questão não tem cabimento.
Do mesmo modo, o desenvolvimento de um país é facilmente
quantificável por meio de sua renda per capita ou seu índice de desenvolvimento humano. Que medida se aplica, porém, à literatura?
Número de tomos, de páginas, de
caracteres com ou sem espaço?
Ela não se submete a medidas, só
a juízos que vão dos subjetivos
aos objetivos, passando pelos intersubjetivos.
Não há literatura subdesenvolvida porque não existe a desenvolvida. Como também não se
pode, salvo metaforicamente, falar em romance ou poema tecnicamente avançado.
Não fosse assim, seria um paradoxo inexplicável o fato de que na
América Latina se tenham escrito
romances tão melhores do que na
Escandinávia ou que, durante o
século passado, tivessem surgido
na Grécia agrária e ditatorial poetas muito superiores aos da Holanda industrial e democrática.
Seja qual for a razão disso, ela nada tem a ver com a economia e,
aliás, nem vale a pena tentar descobri-la.
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