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São Paulo, quarta-feira, 29 de janeiro de 2003

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MARCELO COELHO

Arthur Omar se aventura no redemoinho infernal da floresta

Nunca estive na Amazônia, e para ser sincero nunca tive muita vontade. As fotos e documentários sobre a floresta me parecem sempre cansativos -uma planície verde indistinta- e me lembram um pouco os desfiles de Carnaval transmitidos pela televisão. O negócio pode ser espetacular, sem dúvida, mas me alaga de tédio.
Arthur Omar reuniu suas estranhíssimas fotos em preto-e-branco de passistas e foliões num livro chamado "Antropologia da Face Gloriosa" (Cosac & Naify), que comentei há tempos aqui na Ilustrada. Agora, pela mesma editora, ele publica "O Esplendor dos Contrários - Aventuras da Cor Caminhando sobre as Águas do rio Amazonas".
São quase 200 fotos da floresta, mas o correto seria dizer antifotos. Pois não há nessas imagens nada que se assemelhe ao registro passivo, ao retrato neutro da famosa pujança de nossas matas. Ao contrário, é como se cada fotografia tratasse de reagir, por meio de um delírio próprio, de gestos extremados, de ângulos agônicos, ao gigantismo violento do cenário.
Uma das primeiras fotos do livro mostra os galhos de uma árvore saindo como chifres de uma cobertura de folhas verdes; as folhas se estendem sobre a superfície das águas, parecendo a cauda de uma fantasia carnavalesca. Seria talvez um monstro, um dragão, abrindo o cortejo de aberrações vegetais, de quimeras e vertigens que ocupará as páginas do livro.
Estamos longe da mesmice das fotos clássicas da floresta. Arthur Omar faz uso de muitos recursos para negar, contestar, reagir à cor usual das árvores. Às vezes, o filme em negativo é reproduzido ao lado da foto tradicional: uma formação de plantas e galhos, semelhante a uma águia verde, incendeia-se de vermelho e dourado na página seguinte.
Não entendo nada de técnica fotográfica, mas há algumas imagens que parecem ser, não o negativo, mas o "avesso" de outras; como se as estivéssemos vendo por trás do papel fotográfico.
Em outros momentos, a cor varia fortemente de um lado para o outro da foto; é que a grande-angular foi usada de modo a incluir sombras, reflexos e tons mais distantes do cenário. Essa lente é também responsável, creio, por outro efeito inquietante.
Determinado objeto -um arbusto florido, por exemplo-, em vez de ficar "enquadrado" no fundo da foto, surge como que desventrado, a ponto de explodir. Ou melhor: é como se o autor tivesse fotografado a planta não como ela é, mas como ela seria se estivesse refletida no globo ocular de um monstro, de um gigante, de um ciclope.
As fotos vão ficando cada vez mais assustadoras: alguns troncos de árvore parecem animais do inferno ou deuses de um culto estranho ao homem.
Acho que há mais coisas em jogo aqui do que o virtuosismo fotográfico ou a simples busca da originalidade. No começo do livro, Omar escreve: "minhas lembranças mais antigas (...) falam de cores. Eram cores míticas e violentas. (...) Dizer que eram cores mais profundas seria falsear a experiência. Ao contrário, eram cores mais superficiais. Cores mais à tona (...) Cores saltadas, como veias. Ligeiramente mais próximas do olho do que o próprio objeto que deveriam colorir".
As fotos do livro buscam, diz o autor, "recuperar" essa impressão original das cores, ou, ainda, "lutar pela cor". E é por se tratar de uma "luta" que o trabalho de Arthur Omar abandona o plano do registro visual para fazer de cada foto a expressão de um gesto; resultam de um impulso do corpo, não de uma percepção fixada na retina.
São espetaculares, a esse propósito, as fotos tiradas dos redemoinhos de água, ou, mais precisamente, dos "rebojos". O autor explica o sentido da palavra: é que no rio Amazonas, o barco, ao deslocar-se, desloca não apenas a água, mas também as margens, móveis, do rio.
É assim que o fotógrafo, envolvido no que é pura instabilidade, movimento, furor da água e da floresta, "assume" ou "encarna" a potência da natureza. Mas é de prever que esse redemoinho, ao qual a técnica fotográfica se subordina, ameace submergi-lo.
O livro de Arthur Omar começa narrando uma experiência de quase afogamento. Ele conta que estava numa lancha, explorando um caminho estreito entre as ilhas do rio. Descobre de repente uma formação vegetal inacreditável, uma espécie de falo recoberto de folhas: "um grande pênis, completo, com a forma da cabeça, o tronco ereto e o saco escrotal flutuando na água". Há fotos dessa árvore no livro.
Para Arthur Omar, era como "o coração erótico do Amazonas (...). O mundo inteiro estava por fora. Só eu, naquele instante, estava dentro do círculo mágico". É então que uma tempestade se forma, vira o barco, leva consigo a aparelhagem fotográfica, quase mata o narrador da aventura. O episódio segue de perto a aventura de Ulisses, no canto 26 do "Inferno" de Dante.
Ulisses convence seus companheiros a navegar para além dos confins do mundo conhecido: "Não fostes feitos para viver como brutos, mas para seguir a virtude e o conhecimento". Vão dar na alta montanha do centro do mundo, por onde se ascende ao Paraíso. A tempestade mata os navegantes.
Talvez o livro inteiro de Omar seja o registro desse terror diante da natureza que tentamos dominar e que, naquele lugar pelo menos, se mostra mais forte do que nós. Mas cabe tomar cuidado com os clichês da ecologia politicamente correta...
Se em "Antropologia da Face Gloriosa", o livro de fotos do Carnaval, víamos o mito romântico e bem-comportado do "povo" ser desfeito em imagens de delírio e ejaculação dionisíaca, nestas fotos da Amazônia é criticado outro mito igualmente romântico -a idéia de "natureza". Não é mais um viveiro encantado e feminino, o lugar de um frágil equilíbrio biológico, mas, sim, o centro incompreensível e tempestuoso de uma vontade que nos ignora.
É uma visão tão mítica e antropomórfica quanto qualquer outra, ou até mais. Mas, nas fotos deste livro, surge com o gesto violento de quem arranca a máscara convencional das coisas ou de quem se debate no redemoinho.


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