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MARCELO COELHO
Arthur Omar se aventura no redemoinho infernal da floresta
Nunca estive na Amazônia, e para ser sincero nunca tive muita vontade. As fotos e
documentários sobre a floresta
me parecem sempre cansativos
-uma planície verde indistinta- e me lembram um pouco os
desfiles de Carnaval transmitidos
pela televisão. O negócio pode ser
espetacular, sem dúvida, mas me
alaga de tédio.
Arthur Omar reuniu suas estranhíssimas fotos em preto-e-branco de passistas e foliões num livro
chamado "Antropologia da Face
Gloriosa" (Cosac & Naify), que
comentei há tempos aqui na Ilustrada. Agora, pela mesma editora, ele publica "O Esplendor dos
Contrários - Aventuras da Cor
Caminhando sobre as Águas do
rio Amazonas".
São quase 200 fotos da floresta,
mas o correto seria dizer antifotos. Pois não há nessas imagens
nada que se assemelhe ao registro
passivo, ao retrato neutro da famosa pujança de nossas matas.
Ao contrário, é como se cada fotografia tratasse de reagir, por
meio de um delírio próprio, de
gestos extremados, de ângulos
agônicos, ao gigantismo violento
do cenário.
Uma das primeiras fotos do livro mostra os galhos de uma árvore saindo como chifres de uma
cobertura de folhas verdes; as folhas se estendem sobre a superfície das águas, parecendo a cauda
de uma fantasia carnavalesca.
Seria talvez um monstro, um dragão, abrindo o cortejo de aberrações vegetais, de quimeras e vertigens que ocupará as páginas do
livro.
Estamos longe da mesmice das
fotos clássicas da floresta. Arthur
Omar faz uso de muitos recursos
para negar, contestar, reagir à cor
usual das árvores. Às vezes, o filme em negativo é reproduzido ao
lado da foto tradicional: uma formação de plantas e galhos, semelhante a uma águia verde, incendeia-se de vermelho e dourado na
página seguinte.
Não entendo nada de técnica
fotográfica, mas há algumas imagens que parecem ser, não o negativo, mas o "avesso" de outras;
como se as estivéssemos vendo
por trás do papel fotográfico.
Em outros momentos, a cor varia fortemente de um lado para o
outro da foto; é que a grande-angular foi usada de modo a incluir
sombras, reflexos e tons mais distantes do cenário. Essa lente é
também responsável, creio, por
outro efeito inquietante.
Determinado objeto -um arbusto florido, por exemplo-, em
vez de ficar "enquadrado" no
fundo da foto, surge como que
desventrado, a ponto de explodir.
Ou melhor: é como se o autor tivesse fotografado a planta não
como ela é, mas como ela seria se
estivesse refletida no globo ocular
de um monstro, de um gigante,
de um ciclope.
As fotos vão ficando cada vez
mais assustadoras: alguns troncos de árvore parecem animais
do inferno ou deuses de um culto
estranho ao homem.
Acho que há mais coisas em jogo aqui do que o virtuosismo fotográfico ou a simples busca da
originalidade. No começo do livro, Omar escreve: "minhas lembranças mais antigas (...) falam
de cores. Eram cores míticas e
violentas. (...) Dizer que eram cores mais profundas seria falsear a
experiência. Ao contrário, eram
cores mais superficiais. Cores
mais à tona (...) Cores saltadas,
como veias. Ligeiramente mais
próximas do olho do que o próprio objeto que deveriam colorir".
As fotos do livro buscam, diz o
autor, "recuperar" essa impressão original das cores, ou, ainda,
"lutar pela cor". E é por se tratar
de uma "luta" que o trabalho de
Arthur Omar abandona o plano
do registro visual para fazer de
cada foto a expressão de um gesto; resultam de um impulso do
corpo, não de uma percepção fixada na retina.
São espetaculares, a esse propósito, as fotos tiradas dos redemoinhos de água, ou, mais precisamente, dos "rebojos". O autor explica o sentido da palavra: é que
no rio Amazonas, o barco, ao deslocar-se, desloca não apenas a
água, mas também as margens,
móveis, do rio.
É assim que o fotógrafo, envolvido no que é pura instabilidade,
movimento, furor da água e da
floresta, "assume" ou "encarna"
a potência da natureza. Mas é de
prever que esse redemoinho, ao
qual a técnica fotográfica se subordina, ameace submergi-lo.
O livro de Arthur Omar começa
narrando uma experiência de
quase afogamento. Ele conta que
estava numa lancha, explorando
um caminho estreito entre as
ilhas do rio. Descobre de repente
uma formação vegetal inacreditável, uma espécie de falo recoberto de folhas: "um grande pênis, completo, com a forma da cabeça, o tronco ereto e o saco escrotal flutuando na água". Há fotos dessa árvore no livro.
Para Arthur Omar, era como "o
coração erótico do Amazonas
(...). O mundo inteiro estava por
fora. Só eu, naquele instante, estava dentro do círculo mágico". É
então que uma tempestade se forma, vira o barco, leva consigo a
aparelhagem fotográfica, quase
mata o narrador da aventura. O
episódio segue de perto a aventura de Ulisses, no canto 26 do "Inferno" de Dante.
Ulisses convence seus companheiros a navegar para além dos
confins do mundo conhecido:
"Não fostes feitos para viver como
brutos, mas para seguir a virtude
e o conhecimento". Vão dar na
alta montanha do centro do
mundo, por onde se ascende ao
Paraíso. A tempestade mata os
navegantes.
Talvez o livro inteiro de Omar
seja o registro desse terror diante
da natureza que tentamos dominar e que, naquele lugar pelo menos, se mostra mais forte do que
nós. Mas cabe tomar cuidado
com os clichês da ecologia politicamente correta...
Se em "Antropologia da Face
Gloriosa", o livro de fotos do Carnaval, víamos o mito romântico e
bem-comportado do "povo" ser
desfeito em imagens de delírio e
ejaculação dionisíaca, nestas fotos da Amazônia é criticado outro mito igualmente romântico
-a idéia de "natureza". Não é
mais um viveiro encantado e feminino, o lugar de um frágil
equilíbrio biológico, mas, sim, o
centro incompreensível e tempestuoso de uma vontade que nos ignora.
É uma visão tão mítica e antropomórfica quanto qualquer outra, ou até mais. Mas, nas fotos
deste livro, surge com o gesto violento de quem arranca a máscara
convencional das coisas ou de
quem se debate no redemoinho.
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