São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

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TELEVISÃO

Concentrado na década de 60, o cineasta apresenta cenas inéditas da vida do astro da música americana

Lente de Scorsese redimensiona Dylan em documentário

ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Imagine se João Gilberto virasse um Chico Buarque tropicalista, como se o herói de uma música "refinada" e "adulta" se virasse para as guitarras da jovem guarda e dissesse que aquilo era o futuro de sua carreira. A comparação é forçada, mas basta ver a reação dos antigos fãs de Bob Dylan ao sair de seu concerto elétrico em maio de 1966 e compará-lo com o esgar permanente de MPBistas a termos como "rock" ou "pop". Ao canalizar sua veia criativa na força juvenil dos Beatles, Dylan não apenas deixou a repetitiva cena folk para a história como ampliou seu alcance e importância.
Não dá nem para tentar comparações sobre o outro lado da câmera. Enquanto Dylan pode ser descrito como o híbrido mutante do início do texto, melhor evitar achar o que significaria, num parâmetro brasileiro, um dos principais momentos desta carreira ser revisto pela lente cada vez mais classuda de Martin Scorsese. Mais do que a primeira e mais importante parte da história do principal compositor vivo dos EUA pela lente do autor de "Touro Indomável" e "Taxi Driver", "No Direction Home" (que o Telecine Premium exibe amanhã às 23h40) é a dança perfeita entre dois mestres da manipulação -e o resultado é um dos melhores documentários, não apenas sobre rock, não apenas sobre música, já feitos.
Dividido em duas partes, o filme do ano passado mostra como Robert Zimmerman saiu de uma cidade do interior para se tornar Bob Dylan, o Messias da geração folk do Village nova-iorquino. A primeira parte vem repleta de vasto material audiovisual inédito sobre o cantor, e o diretor recria geneticamente a persona Dylan, comparando maneirismos de suas influências confessas (Woody Guthrie, Hank Williams, Billie Holliday) com o jogo de cena adotado após ser descoberto.
Mas é na segunda parte que está o filé mignon, quando o compositor, encurralado com o título de voz de sua geração, puxa um cavalo-de-pau na própria história e abraça o rock'n'roll como estética, ideologia e válvula de escape. Assume as rédeas de sua vida, ciente das responsabilidades e conseqüências, sem rumo, mas livre. Dylan não tinha nada a perder. Não faltam imagens raras, entrevistas inéditas, apresentações históricas, sobras de filmes da época, em especial da turnê entre 65 e 66, boa parte registrada pelo documentarista para o também clássico "Don't Look Back", de 1968 (cenas coloridas!). Há até o célebre momento em que, numa apresentação com a banda elétrica em Manchester, um espectador chama Dylan de Judas antes de uma rendição agressiva de seu clássico central, "Like a Rolling Stone", do qual saiu o título do documentário.
O crescendo dramático imposto por Scorsese em qualquer um de seus filmes ganha um enredo perfeito e uma coleção de imagens preciosas, que o deixam confortável para recriar os anos 60 norte-americanos usando Dylan como linha mestra. O resultado é mais um capítulo da história dos EUA contada por um de seus mais hábeis narradores. "No Direction Home" faz parte do mesmo novo Scorsese que se reinventa como historiador e esteta. Está para os anos 60 como "O Aviador" está para a Segunda Guerra Mundial e "Gangues de Nova York" para a virada do século 18 para o 19.
Mas ao terminar o filme no mítico acidente de moto que tirou Dylan de circulação por oito anos em 66, o diretor suspende a tensão no ar, quase que matando seu personagem. Não precisa ser "dylanólogo" para saber que Scorsese pára um pouco antes do território mais fértil e sagrado do compositor, quando ele e a Band viram as costas para o "Verão do Amor" para gravar sua própria lenda, recontando a história musical dos EUA nas ainda oficialmente inéditas Basement Tapes. E caso Scorsese venha a concluir seus anos 60 fazendo uma segunda parte sobre este período... Melhor guardar os superlativos para quando (e se) isso sair.


No Direction Home
Onde:
Telecine Premium
Quando: amanhã, às 23h40 (reprise na quarta, às 11h10)



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