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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A velha besta
Tradição econômica européia, tirando exceções, nunca foi entusiasta do mercado
O CAPITALISMO é como certas
mulheres: por melhor que se
porte, terá sempre má fama.
Exagero? Não creio. Basta pensar
nas tradições fundamentais do Ocidente, que sempre olharam para a
besta com o tipo de desconfiança
que Maomé reservava ao chouriço.
Somos filhos de Atenas e Jerusalém? Fato. Mas Atenas e Jerusalém
não apreciavam particularmente o
dinheiro.
Platão, pela boca de Sócrates, entendia que o dinheiro corrompia a
virtude e conduzia os seres humanos a uma existência sem nobreza
cívica, exatamente o oposto do que
ele desejava para a sua "República"
ideal.
Aristóteles, mais moderado, nem
por isso baixava a crítica quando o
assunto envolvia riqueza. O combate à "pleonexia" (à ambição, à ganância) era uma luta cara ao estagirita.
E se Atenas legou esta hostilidade
ao comércio, não encontramos salvação em Jerusalém. Pelo contrário: é mais certo um camelo passar
pelo buraco de uma agulha do que
um rico entrar no reino dos céus.
Ironicamente, alguns dos temas
anticapitalistas do mundo antigo
acabariam por regressar em linguagem moderna.
A idéia do comércio como inimigo
da virtude seria articulada por
Rousseau e, depois dele, por intelectuais de esquerda (Marcuse) ou de
direita (Eliot). E a crença agostiniana de que a riqueza de uns provém
sempre da pobreza de outros é o
maior clichê das passeatas de Porto
Alegre.
Lembrei tudo isso ao ler dois ensaios recentes. O primeiro, de Stephen Theil para a edição corrente
da revista "Foreign Policy". E o segundo, de Peter Saunders, para a vetusta "Policy". Que nos dizem Theil
e Saunders?
Em trabalho notável, Stephen
Theil começa por analisar os livros
de economia que franceses e alemães estudam hoje nas escolas. E o
jornalista descobre que os alunos
não aprendem propriamente economia. Aprendem um discurso sobre a economia que é, em resumo,
uma longa diatribe contra o capitalismo e suas garras desumanas.
Na França, o livro canônico do estudo secundário dá pelo nome de
"Histoire du 20ème Siècle" (história do século 20). E nessa história
contemporânea é apresentada uma
visão terrífica da iniciativa privada,
que alegadamente mergulha os seres humanos em existências arruinadas. Nos bancos da escola, os
franceses não aprendem as leis básicas da oferta e da procura. Mas
aprendem a combater "la McDonaldisation du monde" e, como resultado, a economia gaulesa floresce rumo ao abismo.
Não são caso único. Na Alemanha, conta Theil que os nativos exibem igual hostilidade ao mercado. E
quando o assunto é a globalização
na Europa, eles preferem chamar-lhe "a brasilianização da Europa",
uma expressão que, além de xenófoba, é profundamente ignorante:
qualquer brasileiro, hoje, prefere
emigrar para Londres, não para
Berlim. Porque o capitalismo, mesmo o moderado capitalismo britânico, funciona.
Para Stephen Theil, necessário se
torna rever a filosofia desses livros,
que demonizam o mercado e atribuem ao Estado a função primária
de velar pelos indivíduos. Se a Europa deseja mudar de vida, ela tem de
começar por mudar a forma mental
dos europeus.
É difícil discordar de Theil. Mas eu
não estaria tão esperançado em
qualquer mudança mental. Primeiro, porque a tradição econômica européia, tirando gloriosas exceções,
nunca foi entusiasta do mercado.
Desde Atenas. Desde Jerusalém.
Mas, sobretudo, porque não existem livros sem autores -ou, se preferirmos, sem essa particular espécie que, desde o iluminismo continental, se propõe a dirigir a humanidade. Falo dos "intelectuais". E falar
dos "intelectuais" é falar do estatuto
menor que eles ocupam em sociedades capitalistas, razão pela qual a
maioria se interessa em combatê-las. É Peter Saunders, no segundo
artigo, quem relembra Hayek e a sua
interpretação clássica do fenômeno:
nos últimos 50 anos, e graças à "mão
invisível", a pobreza recuou mais do
que nos últimos 500. Mas a realidade valerá pouco para o "intelectual"
quando ele se confronta com uma
entidade que não conhece e, pior,
não controla: o mercado.
Para Hayek, a hostilidade dos "intelectuais" ao mercado não se explica por uma visão romântica alternativa. Não se explica pela hostilidade
aos ricos ou pelo amor aos pobres.
Explica-se com os caprichos do próprio ego. E, quando o assunto é tão
profundo, não existe nada pior que
vaidade frustrada.
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