São Paulo, sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Verão demais


Sem ter culpa formada, o verão foi condenado a ser produto de consumo, como um sabonete


SÃO DIAS de sol e calor, basta olhar e a gente sabe que o verão se instalou, para desespero daqueles que não suportam aquilo que alguns chamam de "canícula". Ou pior, "verão senegalesco", que faz dupla no lugar-comum com o "frio siberiano".
Em algumas plagas, o verão dura o ano inteiro, aqui no Rio, por exemplo, mas sem este exagero como o deste ano, que abriu suas fornalhas em cima de justos e pecadores. A luminosidade é excessiva, mas não dá vontade de fazer nada, como foi possível criar uma civilização no trópico, chegamos a abençoar aqueles dias cinzentos, desses que os poetas chamam de "plúmbeos".
Nada tenho contra o verão -Deus é testemunha disso. Mas não me agrada o assanhamento geral que já escolheu a musa do verão, a gíria do verão, a música do verão e a dança do verão. Sem ter culpa formada, o verão foi condenado a ser produto de consumo, como um sabonete ou um iPod.
Bem, cada qual se coça como pode, o corcunda sabe como se deita. O melhor verão de um amigo meu, que detestava badalação e gente, foi passado numa praia distante, pescando os seus carapicus em velha e desbotada canoa, um barco descascado que lhe fez companhia, casa e arca, chão e viagem pelo tempo da vida que escolheu.
A mulher que ele amava estava próxima, ao alcance da vista e do desejo, mas ela não interferia na sua solidão, no seu silêncio e na lenta peregrinação através do calor e do mar. Foi, em todos os sentidos, o seu verão, texto final de sua vida. Quando o inverno chegou, os barcos foram retirados para descansar na areia, cobertos com as redes ainda molhadas pelos mares do mundo, ele teve um momento de lucidez retroativa, disse adeus e foi-se embora com um tiro no peito. Chamava-se Jô, como o gordo Soares.
Mas não boto a boca no mundo porque este verão está de lascar, rachando catedrais -como dizia o Nelson Rodrigues. Obedeço ao poeta Horácio e curto o dia de hoje nada deixando para amanhã -e sei que muita gente, mesmo ignorando o poeta latino, já descobriu essa forma de caminhar pela vida.
O certo, também, é que há gente demais no mundo e tudo fica terrivelmente chato no meio de tanta gente. Que fazer? Essa pergunta foi feita por Lênin, num título de livro seu, e parece que nem ele encontrou respostas, embora o problema dele tenha sido outro.
De minha parte, enfrento como posso e com ar-refrigerado, o coração contrito e humilhado, o verão canicular e senegalesco que desabou sobre a cidade. (Em tempo: por pior que seja, acho que o verão não merece esses adjetivos que formam o lugar-comum acima citado).
Quero o verão fora do calendário, tornando-o aquilo que os ascetas chamavam de "estado d'alma" -eis a fórmula para fazermos o nosso laboratório para o verão que já se instalou. E desde já a advertência: não adianta dividir o verão com muita gente.
Lembro a piada do lorde inglês. Estava à janela de sua mansão quando o mordomo, olhando o tempo lá fora, informou: "Acho que vamos ter chuva, sir". Ao que o lorde retrucou: "Não, meu caro James (os mordomos sempre se chamam James nessas piadas), eu terei a minha chuva e você terá a sua chuva!".
Recuso o papel de órfão da tempestade, mas também recuso o assanhamento geral dos dias de sol. Sei que o verão foi feito para todos, mas tenho um truque muito caviloso para fruí-lo à minha maneira. Guardo de cada verão uma imagem na carne da minha memória.
Escrevi certa vez um romance que tinha o verão como personagem principal, foi até filmado em Cabo Frio, com Norma Bengell e Jardel Filho. Um casal que descobre o desamor e resolve se separar depois do verão. A história desse último verão é densa, amarga, sofrida.
O título era óbvio: "Antes, o Verão". Não sei por que (nem para que) andei cismando em fazer outro romance com o título que coloquei acima: "Verão demais". Não, não é um bom título. E ninguém merece esse tipo de ameaça.
Entre o verão assassino que caiu sobre o Rio e o verão diluviano que rompeu suas águas sobre São Paulo, prefiro ainda o do Rio. Verdade seja dita, na pior das hipóteses, o verão, tanto o do Rio como o de São Paulo, dá ainda motivo para uma crônica suada como esta.


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