São Paulo, quinta, 29 de janeiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIDEOCLIPE
No pavilhão 9, cantor dos Racionais encarna um sobrevivente da chacina de volta ao 'país das calças bege'
'Detento' Mano Brown filma no Carandiru

Rachel Guedes/Folha Imagem
Cena de "Diário de um Detento", filmado no presídio do Carandiru


FERNANDO OLIVA
da Redação

O "detento" Mano Brown caminha entre os corpos do massacre do Carandiru: "Ratatatá, sangue jorra como água, do ouvido, da boca e nariz", canta ele. Preso, atrás de grades, prossegue: "Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo, quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio".
Vestindo a típica calça bege dos presidiários, andando pelo pátio da Casa de Detenção, ladeado pelos amigos encarcerados: "Hoje tá difícil, não saiu o sol. Hoje não tem visita, não tem futebol", recita.
Em "Diário de um Detento", primeiro videoclipe da história do grupo paulistano de rap Racionais MC's, o cantor Mano Brown veste a roupa de um presidiário que sobreviveu ao massacre do Carandiru e, de volta ao palco dos acontecimentos, reconta a chacina. A estréia será no sábado, às 12h30, no programa de rap "Yo!" da MTV.
A música faz parte do mais recente disco dos Racionais, "Sobrevivendo no Inferno" (mais de 200 mil cópias vendidas desde novembro do ano passado).
"Diário de um Detento" foi filmado no "país das calças bege" (o Carandiru, numa referência ao uniforme dos presos), palco da tragédia de 2 de outubro de 1992, quando a invasão da Polícia Militar no pavilhão 9 da cadeia resultou na morte de 111 detentos.
O clima realista das imagens, em oito minutos de duração, transforma "Diário de um Detento" num minidocumentário sobre a chacina, na versão de um sobrevivente. A letra da música nasceu do relato de um preso identificado apenas como Jocenir (leia trechos ao lado, respeitando a grafia original).
Brown tinha ido ao Carandiru participar de um jogo de futebol quando o detento lhe entregou a letra, depois acrescida de outras histórias que o rapper recolheu de cartas enviadas por presos.
Os figurantes que atuam no clipe ou são presos mesmo (fizeram questão de aparecer ao lado do ídolo Mano Brown) ou amigos do rapper no Capão Redondo, zona sul, periferia de São Paulo.
Quase totalmente em preto-e-branco, abusando da câmera lenta, o videoclipe é cru e direto como a letra da canção.
"Diário de um Detento" usa ainda fotografias captadas durante as filmagens, nos dias 3 e 12 de dezembro de 1997. As imagens, da fotógrafa Rachel Guedes, retratam o dia-a-dia dos presos: lutando capoeira, fazendo musculação, costurando sapatos.
Em fevereiro, o grupo começa a filmar o clipe de "Rapaz Comum", do mesmo CD. De acordo com o diretor Maurício Eça, os dois clipes custaram R$ 30 mil.
Reafirmando sua política de negar entrevistas a grandes órgãos de comunicação, Brown recusou-se a falar à Folha sobre o videoclipe.
"Grande dia"
Brown "declama" o massacre em "flashback", como se estivesse lendo seu diário. Repleto de referências autobiográficas, o clipe começa com crianças jogando dominó em rua de terra do Capão Redondo, onde o rapper passou a infância. Na sequência, a fusão de imagens é reveladora: agora é Brown que, já na pele de presidiário, joga dominó com outros presos numa das celas do pavilhão 9.
No começo ("dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã"), as anotações do sobrevivente no diário falam do cotidiano tenso e opressor da cadeia, a dúvida sobre a futura liberdade, a preocupação com a segurança da mãe.
No dia seguinte, o massacre. Na versão que ficou conhecida como a dos detentos, tudo começara com uma discussão entre dois presos de gangues rivais, no segundo andar do pavilhão 9. Numa das poucas sequências coloridas, Brown aparece em primeiro plano, enquanto a briga começa ao fundo.
Aqui, como nas outras cenas, são amigos do rapper, presos ou não, que atuam como personagens. "Era a brecha que o sistema queria, avise o IML, chegou o grande dia", canta Brown.
"Diário de um Detento", o clipe, termina fazendo críticas à atuação do governo na época da chacina e à impunidade dos acusados. "Mas quem vai acreditar no meu depoimento?" é a pergunta que Brown deixa no ar.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.