São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2004

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CINEMA

"Onde Anda Você", de Sérgio Rezende, acompanha a viagem de "um homem na crosta do planeta", diz o diretor

Filme retrata personagem em busca de si

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Felício Barreto (Juca de Oliveira) é um palhaço que perdeu o parceiro, a mulher e o sorriso. Ele parte em busca de uma nova razão para seguir vivendo (ou de uma serena despedida da vida) em "Onde Anda Você", décimo filme do cineasta Sérgio Rezende, que pré-estréia amanhã, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
O lançamento nos cinemas está previsto para o próximo dia 9, em aproximadamente 40 salas de cidades do Sudeste e do Nordeste, regiões onde o longa tem suas locações. A viagem do personagem principal parte de São Paulo e alcança o Piauí e o Ceará. A razão do trajeto desse palhaço triste ser em direção "à beirada do Brasil, e não ao coração do país" é um dos aspectos que o diretor aborda, na entrevista a seguir.

Folha - Por meio da história de um homem que revê sua trajetória profissional e suas principais relações de amor e de amizade, o sr. filmou um réquiem para um palhaço. Como lhe ocorreu essa idéia?
Sérgio Rezende -
O filme tem dois planos -uma viagem do cara em busca de um parceiro [outro comediante com quem dividir seus números] e ele numa viagem interior, em busca de si mesmo.
Com a crise gerada pela morte da mulher, a grande paixão de sua vida, ele percebe que está jogando a vida fora. Sua busca é por esses valores fundamentais e esquecidos -a amizade, o amor, a solidariedade, o perdão.
Depois de ter feito muitos filmes sobre a realidade, os grandes personagens [são de Rezende, entre outros, os longas "Lamarca" (1994), "A Guerra de Canudos" (1997) e "Mauá, o Imperador e o Rei" (1999)], senti uma vontade profunda de fazer um filme sobre as pequenas coisas da vida. O filme tem a aventura de você se redescobrir, reconciliar-se consigo mesmo e com os outros.

Folha - Quando Felício anuncia a decisão de ir ao Nordeste, para encontrar a ingenuidade que o ambiente urbano do Sudeste eliminou, Mirandinha (Castrinho) afirma que a ingenuidade já não existe, uma vez que o país está todo contaminado pela brutalidade da TV. Essa é uma forma de dizer que não há mais lugar para os valores humanistas que o sr. enumera na busca do protagonista?
Rezende -
Isso é o que ele acreditava. Ele começa o filme com uma visão muito amarga de tudo e de si. Ao mesmo tempo, convive com a grande ingenuidade de achar que ainda pode haver lugar para ele na TV. Quando percebe que não, se vê diante de si mesmo, só. Talvez saiba que não vai trabalhar mais e que sua busca é reencontrar a paz consigo mesmo.

Folha - O sr. diz que procurou homenagear os primeiros filmes de Federico Fellini (1920-1993) e os últimos de Charles Chaplin (1889-1977). Como essa opção dialoga com o cinema brasileiro atual?
Rezende -
O filme se relaciona mais com a história do cinema do que com a história do Brasil. Procurei uma maneira de filmar distante da contemporânea, que é muito febril, tanto no jeito de montar, entrecortando violentamente o filme, como no modo ágil de filmar. Quis fazer um filme nessa onda mais antiga, que a gente chamava filme de cinema, com uma certa calma na narrativa, uma elaboração dos planos.
Isso tem a ver com a própria história do filme, que é acreditar numa coisa mais simples, procurar a simplicidade das imagens, deixar que elas falem por si.

Folha - "Onde Anda" é também um filme de personagem. Por que o sr. escalou Juca de Oliveira para o papel principal e deu a José Wilker, ator habitual em sua filmografia, o papel do fantasma Mandarim?
Rezende -
Desde o primeiro instante em que pensei nesse filme, pensei no Juca. Não sei exatamente o porquê. Não foi só porque ele é um grande ator e tem o "phisique du rôle". Tive uma intuição. Aí ele foi convidado para fazer [a novela] "O Clone". Esperamos quase um ano para que ele pudesse filmar. Diante do resultado, vi que valeu a pena. É inacreditável como o Juca tem feito poucos filmes. Há mais de 20 anos não fazia um protagonista no cinema.
Wilker e eu somos velhos parceiros. Mando o roteiro para ele e digo: Zé, escolhe aí o personagem que você quiser. Ele escreveu um livro chamado "Como Deixar Um Relógio Emocionado" (Scritta, 1996). Acho que é mais ou menos isso o que Wilker e Juca são -relógios emocionados, ou seja, uma precisão absoluta na interpretação e uma emoção muito grande.

Folha - Que tipo de colaboração o sr. pediu à direção de fotografia, ao decidir filmar a vastidão da paisagem litorânea?
Rezende -
No cinema, em geral, temos muito medo da paisagem. Mas eu não acho que a paisagem seja escapismo. Ela é a realidade deste planeta em que vivemos e estamos vivendo muito mal, assim como o Felício. Ele é um homem andando na crosta do planeta, como nós. É o que somos.
No cinema brasileiro, temos sempre a metáfora de um cara viajando em direção ao coração do Brasil. Os filmes-de-estrada têm a tendência de ir se aprofundando no Brasil. Eu quis fazer o contrário. O filme tinha de acabar na beira d'água, onde tudo começou, onde chegaram os portugueses, e não lá no coração.
O [diretor de fotografia] Guy Gonçalves, com quem trabalhei no meu filme anterior, "Quase Nada" (2000), fez um trabalho espetacular para o filme. Ele foi muito feliz ao não fazer uma fotografia realista, ao procurar, com sua palheta, as cores que servissem ao filme. O Nordeste, por exemplo, filmamos sem aquela cor folclórica. É Nordeste, mas podia ser outro lugar qualquer.


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