São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Roma e Pavia desfizeram-se um dia

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Regresso a Roma e, junto ao Capitólio, é impossível não recordar Edward Gibbon (1737-1794). Em 1764, Gibbon confrontava-se com as ruínas da cidade e, entre a melancolia e o assombro, decidia escrever obra clássica sobre o declínio e queda de Roma. Como foi possível, perguntava Gibbon, que uma civilização imensamente poderosa e complexa pudesse desabar de forma tão dramática?
A pergunta de Gibbon e a resposta do autor em "Decline and Fall of the Roman Empire" são também partilhadas por livrinho assombroso publicado recentemente e que me acompanha nestes dias de sol romano. Falo de Bryan Ward-Perkins e do seu "The Fall of Rome and the End of Civilization" (Oxford University Press, 239 págs.). A leitura é aconselhável, mas a tese não é pacífica.
Ward-Perkins, arqueólogo e professor da Universidade de Oxford, explica porque: nas últimas décadas, e por motivos políticos alheios à verdade da história, tem havido a tendência de olhar para a queda de Roma não como uma "queda", muito menos como o fim de uma "civilização"; antes como transformação mais ou menos pacífica que, nos inícios do século 5º, teria conduzido o império para a medievalidade cristã. Sem traumas nem dramas.
Invasões? Bárbaros? Nem uma coisa nem outra. Os bárbaros ou, para sermos politicamente corretos, os "povos germânicos" foram entrando em Roma e, se possível, tomando chá e comendo bolinhos com as elites romanas. A própria União Européia, explica Ward-Perkins, tem largamente apoiado (e financiado) tal versão da história: uma forma simpática de reinventar um passado de concórdia entre os povos do continente.
Ward-Perkins destrói essa visão com erudição e rigor. A História não é uma brincadeira política. Vive de fontes, documentos, fatos.
E que nos dizem os fatos? Que Roma caiu, sim; que a entrada de Alarico, rei dos visigodos, em Roma (410), foi traumática, sim; que a economia, a técnica, a arte e a vida letrada regrediu, sim; e que a complexidade de Roma recuou mil anos até ao nível da Idade do Ferro e que demorou mil anos a recuperar das invasões bárbaras que, sem manipulações políticas ou fantasias multiculturalistas, destruíram um Império, sim.
Os exemplos são múltiplos. No século 5º, era possível a um simples agricultor do norte de Itália guardar líquidos domésticos em ânforas do norte de África de qualidade razoável e dormir em habitações sólidas com cobertura de telha. Isso acabaria por desaparecer nos séculos seguintes: modestas casas de madeira, com cobertura de palha, marcariam a paisagem medieval européia.
Mas não só. A moeda acabaria por desaparecer como instrumento corrente, comercial, diário. Desapareceriam também indústrias inteiras, ligações comerciais necessárias para alimentar o Império. A segurança acabaria por declinar: por pressão externa ou guerra interna. E a literacia, que Ward-Parkins ilustra com documentos oficiais ou simples "graffiti" nas paredes das cidades romanas, declinou também. Não é de admirar que, três anos depois da entrada de Alarico em Roma, santo Agostinho tenha desvalorizado a cidade terrena pela exaltação da "Cidade de Deus". A cidade terrena não era particularmente agradável.
Leio Ward-Parkins junto ao Fórum. Dia quente, com turistas que posam para retratos de ocasião. E então pergunto se, um dia, tudo isto acabará por desaparecer também: o conforto de um mundo às mãos dos seus inimigos. Uns anos atrás, Fukuyama apresentava uma retrato idílico, onde as democracias liberais encerravam com chave de ouro a história da humanidade. O melhor dos mundos possíveis, dizia Fukuyama em "O Fim da História e o Último Homem". Depois chegou o 11 de Setembro. A ameaça do fanatismo islâmico nas ruas de Madri ou Londres. E a História se abriu novamente, como sempre se abre às contingências do tempo.
Sim, as analogias valem o que valem. Mas acreditar na eternidade de uma civilização é não aprender nada com a evidência destas ruínas.


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