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CARTAS DA EUROPA
Roma e Pavia desfizeram-se um dia
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Regresso a Roma e, junto
ao Capitólio, é impossível
não recordar Edward Gibbon
(1737-1794). Em 1764, Gibbon
confrontava-se com as ruínas da
cidade e, entre a melancolia e o
assombro, decidia escrever obra
clássica sobre o declínio e queda
de Roma. Como foi possível, perguntava Gibbon, que uma civilização imensamente poderosa e
complexa pudesse desabar de forma tão dramática?
A pergunta de Gibbon e a resposta do autor em "Decline and
Fall of the Roman Empire" são
também partilhadas por livrinho
assombroso publicado recentemente e que me acompanha nestes dias de sol romano. Falo de
Bryan Ward-Perkins e do seu
"The Fall of Rome and the End of
Civilization" (Oxford University
Press, 239 págs.). A leitura é aconselhável, mas a tese não é pacífica.
Ward-Perkins, arqueólogo e
professor da Universidade de Oxford, explica porque: nas últimas
décadas, e por motivos políticos
alheios à verdade da história, tem
havido a tendência de olhar para
a queda de Roma não como uma
"queda", muito menos como o
fim de uma "civilização"; antes
como transformação mais ou menos pacífica que, nos inícios do século 5º, teria conduzido o império
para a medievalidade cristã. Sem
traumas nem dramas.
Invasões? Bárbaros? Nem uma
coisa nem outra. Os bárbaros ou,
para sermos politicamente corretos, os "povos germânicos" foram
entrando em Roma e, se possível,
tomando chá e comendo bolinhos
com as elites romanas. A própria
União Européia, explica Ward-Perkins, tem largamente apoiado
(e financiado) tal versão da história: uma forma simpática de reinventar um passado de concórdia
entre os povos do continente.
Ward-Perkins destrói essa visão
com erudição e rigor. A História
não é uma brincadeira política.
Vive de fontes, documentos, fatos.
E que nos dizem os fatos? Que
Roma caiu, sim; que a entrada de
Alarico, rei dos visigodos, em Roma (410), foi traumática, sim; que
a economia, a técnica, a arte e a
vida letrada regrediu, sim; e que a
complexidade de Roma recuou
mil anos até ao nível da Idade do
Ferro e que demorou mil anos a
recuperar das invasões bárbaras
que, sem manipulações políticas
ou fantasias multiculturalistas,
destruíram um Império, sim.
Os exemplos são múltiplos. No
século 5º, era possível a um simples agricultor do norte de Itália
guardar líquidos domésticos em
ânforas do norte de África de
qualidade razoável e dormir em
habitações sólidas com cobertura
de telha. Isso acabaria por desaparecer nos séculos seguintes: modestas casas de madeira, com cobertura de palha, marcariam a
paisagem medieval européia.
Mas não só. A moeda acabaria
por desaparecer como instrumento corrente, comercial, diário. Desapareceriam também indústrias
inteiras, ligações comerciais necessárias para alimentar o Império. A segurança acabaria por declinar: por pressão externa ou
guerra interna. E a literacia, que
Ward-Parkins ilustra com documentos oficiais ou simples "graffiti" nas paredes das cidades romanas, declinou também. Não é de
admirar que, três anos depois da
entrada de Alarico em Roma,
santo Agostinho tenha desvalorizado a cidade terrena pela exaltação da "Cidade de Deus". A cidade terrena não era particularmente agradável.
Leio Ward-Parkins junto ao Fórum. Dia quente, com turistas que
posam para retratos de ocasião. E
então pergunto se, um dia, tudo
isto acabará por desaparecer
também: o conforto de um mundo às mãos dos seus inimigos. Uns
anos atrás, Fukuyama apresentava uma retrato idílico, onde as
democracias liberais encerravam
com chave de ouro a história da
humanidade. O melhor dos mundos possíveis, dizia Fukuyama em
"O Fim da História e o Último
Homem". Depois chegou o 11 de
Setembro. A ameaça do fanatismo islâmico nas ruas de Madri ou
Londres. E a História se abriu novamente, como sempre se abre às
contingências do tempo.
Sim, as analogias valem o que
valem. Mas acreditar na eternidade de uma civilização é não
aprender nada com a evidência
destas ruínas.
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