São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2007

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NINA HORTA

Coma chocolate, Sueli, coma!

Pense no ovo e enfie os dentes numa barra untuosa de chocolate e saboreie sem pressa

UMA MENINA de cintura de pilão e olhos buliçosos entrou para trabalhar no bufê, há 20 anos, como ajudante de cozinha.
Hoje, pesa cento e tantos quilos, mas não perdeu a graça. É a mais sexy das cozinheiras sacudindo as banhas firmes ao som da música dos DJs dos salões de festa enquanto frita bolinhos. Ágil, trabalhadeira, cheia de covinhas, generosa, fértil, suculenta, lustrosa, gostosa.
Se os que a rodeiam não se incomodassem com sua gordura, acho que seria mais feliz. Nesta semana, precisou fazer uma tomografia. Pois não é que não há hospital do convênio, ou melhor, não há hospitais com uma máquina na qual ela caiba?
Chegou na minha sala chorando, humilhada. "Sabe, dona Nina, é por causa do meu tamanho, sou muito alta, não entro na máquina." "Alta, Sueli? Um catatau desses? Você é gorda, não alta. Ficou maluca?"
Pelo jeito, ela raciocina que se fosse alta, a gordura se redistribuiria melhor e seria magra. Começo a dar tratos à bola para melhorar a auto-estima dela, mas todos na cozinha estão envolvidos pelo problema do seu peso e focalizam o olhar na gordura da moça, sem perceber seus próprios rabos. Difícil encontrar um lugar mais diversificado do que uma cozinha. Seres de todas as raças e tipos e cores e aspectos e preferências sexuais e deficiências físicas e... temos de tudo um pouco, mas o preconceito maior cai sobre a gordura.
Ela é feia, vai morrer, não pode ir às festas, ocupa muito lugar etc. e tal.
O ônibus lotado não pára para ela, os uniformes têm que ser sob medida. "Vamos lá, então, Sueli, sei que você gosta do Jô, já fizemos festas para ele. Não é um homem sexy? E aquela dancinha do ventre, abrindo o paletó? O gordo pode ser lindo, menina.
E o Marlon Brando, a leveza dele, e o Pavarotti?" Ela começa a enxugar as lágrimas. "Pense no pessoal ao seu redor? Gorda ou raquítica? Gorda ou gay? Gorda ou burra e vesga?
Gorda ou alcoólatra? Gorda ou fumante inveterada? Gorda ou mãe solteira? Gorda ou analfabeta? Gorda ou negra de cabelo ruim?" Ela não discrimina absolutamente nenhuma dessas categorias, ama todos com seu coração de gorda, mas prefere ser a Sueli mesmo. Funga um pouco, como em dúvida atroz. O pesadelo do gordo é que ele chama a atenção, ocupa mais lugar, pressupõe uma culpa inexistente, uma falha moral. O gordo precisa esconder a fartura dos peitos, a boca grande e molhada, a bunda calipígia. (Um pequeno senão. Sueli não tem bunda que se mencione.) E os gordos sonham com a utopia.
Com o dia em que o pêndulo da moda redescubra as três graças de Rubens, Renoir, o poder dos reis gordos, dos presidentes fortes, em que os modelos sejam Vênus de Willendorf e de Laussel, dia em que as dietas serão banidas porque, além de não funcionarem, fazem mal, dia em que precise emagrecer somente um tantinho para se viver com saúde.
As mulheres, mais do que os homens, têm obsessão por chocolate.
Parece que precisam da gordura para manter a função metabólica controlada. Mas, Sueli, perca as esperanças! Não chegou a hora do ovo de Páscoa sem culpa. Ainda estamos combatendo a anorexia. A alegria das gordas só chegará com um sério trabalho político, até desobediência civil, uma revolução, enfim. Neste dia, comer com prazer não será mais pecado, e sim obrigação. Por que os cegos e os coxos se riem dos gordos?
Porque os próprios gordos se detestam e se acham culpados.
A nossa cultura não contribui para sua auto-estima. Atenção, Sueli, o Domingo de Páscoa está chegando e pode ser que a vergonha e a culpa de comer é que te façam engordar. Pense no ovo, na ressurreição, na vida nova e enfie os dentes brancos numa barra untuosa de chocolate e saboreie sem pressa ou ansiedade.
Coma chocolate, menina, coma, principalmente agora quando você coube na máquina do laboratório Fleury com facilidade. As máquinas é que eram pequenas, garota.


ninahorta@uol.com.br

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