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NINA HORTA
Coma chocolate, Sueli, coma!
Pense no ovo e enfie os dentes numa barra untuosa de chocolate e saboreie sem pressa
UMA MENINA de cintura de pilão e olhos buliçosos entrou
para trabalhar no bufê, há 20
anos, como ajudante de cozinha.
Hoje, pesa cento e tantos quilos, mas
não perdeu a graça. É a mais sexy das
cozinheiras sacudindo as banhas firmes ao som da música dos DJs dos
salões de festa enquanto frita bolinhos. Ágil, trabalhadeira, cheia de
covinhas, generosa, fértil, suculenta,
lustrosa, gostosa.
Se os que a rodeiam não se incomodassem com sua gordura, acho
que seria mais feliz. Nesta semana,
precisou fazer uma tomografia. Pois
não é que não há hospital do convênio, ou melhor, não há hospitais com
uma máquina na qual ela caiba?
Chegou na minha sala chorando,
humilhada. "Sabe, dona Nina, é por
causa do meu tamanho, sou muito
alta, não entro na máquina." "Alta,
Sueli? Um catatau desses? Você é
gorda, não alta. Ficou maluca?"
Pelo jeito, ela raciocina que se fosse alta, a gordura se redistribuiria
melhor e seria magra. Começo a dar
tratos à bola para melhorar a auto-estima dela, mas todos na cozinha
estão envolvidos pelo problema do
seu peso e focalizam o olhar na gordura da moça, sem perceber seus
próprios rabos. Difícil encontrar um
lugar mais diversificado do que uma
cozinha. Seres de todas as raças e tipos e cores e aspectos e preferências
sexuais e deficiências físicas e... temos de tudo um pouco, mas o preconceito maior cai sobre a gordura.
Ela é feia, vai morrer, não pode ir
às festas, ocupa muito lugar etc. e tal.
O ônibus lotado não pára para ela, os
uniformes têm que ser sob medida.
"Vamos lá, então, Sueli, sei que você gosta do Jô, já fizemos festas para
ele. Não é um homem sexy? E aquela
dancinha do ventre, abrindo o paletó? O gordo pode ser lindo, menina.
E o Marlon Brando, a leveza dele, e o
Pavarotti?" Ela começa a enxugar as
lágrimas. "Pense no pessoal ao seu
redor? Gorda ou raquítica? Gorda
ou gay? Gorda ou burra e vesga?
Gorda ou alcoólatra? Gorda ou fumante inveterada? Gorda ou mãe
solteira? Gorda ou analfabeta? Gorda ou negra de cabelo ruim?"
Ela não discrimina absolutamente nenhuma dessas categorias, ama
todos com seu coração de gorda,
mas prefere ser a Sueli mesmo. Funga um pouco, como em dúvida atroz.
O pesadelo do gordo é que ele chama
a atenção, ocupa mais lugar, pressupõe uma culpa inexistente, uma falha moral. O gordo precisa esconder
a fartura dos peitos, a boca grande e
molhada, a bunda calipígia. (Um pequeno senão. Sueli não tem bunda
que se mencione.)
E os gordos sonham com a utopia.
Com o dia em que o pêndulo da moda redescubra as três graças de Rubens, Renoir, o poder dos reis gordos, dos presidentes fortes, em que
os modelos sejam Vênus de Willendorf e de Laussel, dia em que as dietas serão banidas porque, além de
não funcionarem, fazem mal, dia em
que precise emagrecer somente um
tantinho para se viver com saúde.
As mulheres, mais do que os homens, têm obsessão por chocolate.
Parece que precisam da gordura para manter a função metabólica controlada. Mas, Sueli, perca as esperanças! Não chegou a hora do ovo de
Páscoa sem culpa. Ainda estamos
combatendo a anorexia. A alegria
das gordas só chegará com um sério
trabalho político, até desobediência
civil, uma revolução, enfim. Neste
dia, comer com prazer não será mais
pecado, e sim obrigação. Por que os
cegos e os coxos se riem dos gordos?
Porque os próprios gordos se detestam e se acham culpados.
A nossa cultura não contribui para
sua auto-estima. Atenção, Sueli, o
Domingo de Páscoa está chegando e
pode ser que a vergonha e a culpa de
comer é que te façam engordar. Pense no ovo, na ressurreição, na vida
nova e enfie os dentes brancos numa
barra untuosa de chocolate e saboreie sem pressa ou ansiedade.
Coma chocolate, menina, coma,
principalmente agora quando você
coube na máquina do laboratório
Fleury com facilidade. As máquinas
é que eram pequenas, garota.
ninahorta@uol.com.br
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