São Paulo, sábado, 29 de março de 2008

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Palco da discórdia

Produtores teatrais criticam visão do Ministério da Cultura, publicada em artigo na Folha, sobre incoerências na Lei Rouanet; para presidente de associação, existência de empresa que capta R$ 40 mi justifica revisão, e não extinção

LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira polêmica envolvendo o Ministério da Cultura em 2008 partiu do próprio Ministério da Cultura. O governo lida desde anteontem com um tiroteio de reações contrárias ao artigo "Incentivo ao Teatro?", que o secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira, e o ator e presidente da Funarte (órgão vinculado ao ministério), Celso Frateschi, publicaram nesta Folha.
No texto, os autores discutem a eficiência da Lei Rouanet, principal mecanismo de financiamento da atividade cultural no país, e apontam distorções em sua aplicação. Frateschi e Ferreira dizem que a redução do número de sessões semanais dos espetáculos (de seis a oito antes da lei; duas ou três atualmente) e o encurtamento das temporadas vão de encontro ao principal objetivo da lei: universalizar o acesso à cultura nacional.
A crescente concentração das produções na região Sudeste, segundo os autores, é outro fator que joga contra.
Mais uma distorção no uso da Lei Rouanet apontado pelo artigo é o fato de que produtores culturais passaram a extrair maiores lucros com a captação de recursos para montar as peças do que com suas respectivas bilheterias. Assim, "a razão de ser do espetáculo não é mais o público", sustenta o texto.
Mais à frente, no trecho que mais causou desconforto entre os produtores, Frateschi e Ferreira rebatem o argumento de que "o teatro não se auto-sustenta economicamente" com um exemplo: o de um proponente que, em cinco anos, captou R$ 40 milhões pela Rouanet, apesar do retrospecto de "sucessos retumbantes" -ou seja, os lucros de uma montagem poderiam bancar outras.
A Folha apurou que se trata da Time for Fun (ex-CIE Brasil), multinacional por trás de musicais como "O Fantasma da Ópera" e "Miss Saigon". Procurada pela reportagem, a empresa não comentou o artigo.

Pecado e pecador
Paulo Pélico, diretor-secretário da Apetesp (Associação dos Produtores Teatrais do Estado de São Paulo), diz que a argumentação de Frateschi e Ferreira é "marcada pelo equívoco, pela simplificação grosseira do processo teatral; tenta confundir a opinião pública fazendo aquela desonestidade intelectual de colocar o pecado, e não o pecador [referência aos R$ 40 milhões captados pela CIE]". "Nós todos [produtores independentes] entramos como milionários da produção teatral, o que é mentira."
Produtor da peça "Salmo 91", que levou dois prêmios Shell em SP neste ano, Claudio Fontana acha "antipático da parte do Frateschi, ele também um produtor de teatro, dizer que o problema são os produtores. A situação da Lei Rouanet foi criada pelo próprio governo, que saiu da sua função, subsidiar a cultura, e transferiu esse problema também para os produtores. A gente tem que jogar segundo as regras do governo".
Para Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio (APTR), "pensar que todos nós somos CIE ou Time for Fun é desconhecimento completo da nossa área. Somos a classe média do teatro, que está tão achacada quanto toda a classe média brasileira. Não é por que um proponente capta R$ 40 milhões que a lei tem de ser extinta ou que o incentivo fiscal não deu certo. Há distorções que têm de ser consertadas".

Secretaria nacional
Desvios de rota que produtores como Barata esperam que o projeto de criação da Secretaria Nacional de Teatro, em tramitação no Senado, ajude a corrigir. "Vemos a secretaria como um espaço de discussão e formulação de políticas públicas em que se tenha uma lei analisada por profissionais que entendam do fazer teatral. Não podemos ter uma lei em que o parecerista pergunte: "se você tem cenógrafo, por que quer programador visual?" É a esse nível que se chega [hoje]!"
A classe faz lobby por uma lei que acrescente ao mecenato uma modalidade de "investimento" (já prevista na Rouanet, mas não colocada em prática), em que o patrocinador tem incentivos fiscais menos significativos, mas adquire uma cota do espetáculo (que lhe garante participação nos lucros).
Ouvido pela Folha, Frateschi diz que "eles [produtores] trabalham ainda sob o paradigma da Lei Rouanet. Ela é uma das formas de financiamento que o Estado pode promover. Podemos ter outras, que trabalhem com o teatro como direito de cidadania, fator simbólico e atividade econômica."
O presidente da Funarte frisa, entretanto, tratar-se "de uma discussão que está começando" e que os produtores "são pessoas seriíssimas, interessadas no teatro; ninguém quer se locupletar".

Curta temporada
As ponderações feitas no artigo acerca do aumento do número de montagens com temporadas curtas também são questionadas pelos produtores.
"É verdade que se chega ao ponto de algumas produções só pegarem o patrocínio e estrearem [sem se preocupar com a bilheteria]. Mas isso está relacionado à falta de critério e fiscalização na seleção [das peças que podem captar patrocínio]", opina João Falcão, produtor de "A Máquina" e "O Drama".
Pélico diz lamentar que "dirigentes de primeiro escalão desconheçam que a redução de sessões e do público deve-se ao empobrecimento da classe média, à falência da educação, à violência, ao problema da meia-entrada e até ao trânsito".
Barata acrescenta que é preciso levar em consideração que "os teatros públicos geralmente dão de dois a três meses para um espetáculo estar em cartaz.
Mesmo quando fazemos sucesso, somos obrigados a sair".
Já Jorge Takla, diretor e produtor de "My Fair Lady" e "West Side Story", se diz um "privilegiado". "Os espetáculos que faço têm recebido público do Brasil inteiro. É possível fazer longas temporadas, sim."

Lei de fomento nacional
O governo, no entanto, tem uma base de respaldo numa parcela dos profissionais de teatro. O articulador dessa vertente é o Redemoinho, reunião de grupos que, na última quinta, organizou protestos em várias cidades contra o atual formato de incentivo fiscal. Defendem, em vez disso, fundos geridos pelo poder público.
Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, diz que "não dá para concordar com que o dinheiro hoje pare nas mãos do artista ou do produtor do espetáculo, enquanto o grande público não tem acesso ao bem cultural".


Com LAURA MATTOS, SILVANA ARANTES, VALMIR SANTOS E ADRIANA PAVLOVA


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