São Paulo, domingo, 29 de março de 2009

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comentário

Série renovou a ficção televisiva

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Para quem ainda vive ou se lembra, a febre começou nos anos 60, quando eles se chamavam doutor Kildare ou Marcus Welby e já guardavam, além do poder de salvar vidas, o de expor as entranhas de uma sociedade. Nos anos 70, foi a vez do escárnio, na figura dos cirurgiões aloprados de "M.A.S.H.", a série criada a partir da visão cáustica e antibélica imaginada pouco antes no cinema por Robert Altman em pleno tempo de guerra.
Já nos 80, a desilusão contaminou a amargura do tom e infeccionou com um novo realismo o hospital de "St. Elsewhere", preparando o terreno para o impacto que "ER" provocaria na década seguinte.
Com "ER" chegou o momento de o médico, este semideus de nossa ficção cotidiana, abandonar seu avental de homem bom e ícone virtuoso e encarnar fragilidades diante do bem e do mal e, sobretudo, da vida e da morte.
Os corredores do pronto-socorro do Chicago County Hospital lotaram de milhares de histórias de perdas. E refletiram com audácia e pertinência a dor das mutações sociais e das crises morais, tantas rupturas de um tempo saturado de urgências.
O sucesso avassalador de "ER" foi efeito, sem dúvida, da conjugação de fatores, como a combinação de habilidades narrativas, astúcias temáticas e a injeção de um ritmo taquicárdico nas ficções de TV. E de talentos, como a trinca de criação, produção e execução a cargo de Michael Crichton, Spielberg e John Wells.
Com a força de um desfibrilador, "ER" revitalizou a ficção de TV, enquanto "Chicago Hope", sua companheira de berçário e concorrente direta, foi mandada para a UTI e entrou num longo coma.
A receptividade e longevidade de "ER", contudo, explicam-se mais por ter sabido captar, explorar e expressar a medicalização da vida, cuja emergência é sua contemporânea.
Por trás da preocupação com nossos corpos e nossa saúde, o sucesso de "ER" repercute de fato um sintoma, depois amplificado pela chegada do doutor House, que sofremos de uma epidemia que antes recebia o nome mais exato de hipocondria.


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