|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
comentário
Série renovou a ficção televisiva
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Para quem ainda vive ou
se lembra, a febre começou nos anos 60, quando
eles se chamavam doutor
Kildare ou Marcus Welby
e já guardavam, além do
poder de salvar vidas, o de
expor as entranhas de uma
sociedade. Nos anos 70, foi
a vez do escárnio, na figura
dos cirurgiões aloprados
de "M.A.S.H.", a série criada a partir da visão cáustica e antibélica imaginada
pouco antes no cinema
por Robert Altman em
pleno tempo de guerra.
Já nos 80, a desilusão
contaminou a amargura
do tom e infeccionou com
um novo realismo o hospital de "St. Elsewhere", preparando o terreno para o
impacto que "ER" provocaria na década seguinte.
Com "ER" chegou o momento de o médico, este
semideus de nossa ficção
cotidiana, abandonar seu
avental de homem bom e
ícone virtuoso e encarnar
fragilidades diante do bem
e do mal e, sobretudo, da
vida e da morte.
Os corredores do pronto-socorro do Chicago
County Hospital lotaram
de milhares de histórias de
perdas. E refletiram com
audácia e pertinência a
dor das mutações sociais e
das crises morais, tantas
rupturas de um tempo saturado de urgências.
O sucesso avassalador
de "ER" foi efeito, sem dúvida, da conjugação de fatores, como a combinação
de habilidades narrativas,
astúcias temáticas e a injeção de um ritmo taquicárdico nas ficções de TV. E
de talentos, como a trinca
de criação, produção e
execução a cargo de Michael Crichton, Spielberg
e John Wells.
Com a força de um desfibrilador, "ER" revitalizou
a ficção de TV, enquanto
"Chicago Hope", sua companheira de berçário e
concorrente direta, foi
mandada para a UTI e entrou num longo coma.
A receptividade e longevidade de "ER", contudo,
explicam-se mais por ter
sabido captar, explorar e
expressar a medicalização
da vida, cuja emergência é
sua contemporânea.
Por trás da preocupação
com nossos corpos e nossa
saúde, o sucesso de "ER"
repercute de fato um sintoma, depois amplificado
pela chegada do doutor
House, que sofremos de
uma epidemia que antes
recebia o nome mais exato
de hipocondria.
Texto Anterior: Fim de plantão Próximo Texto: Fim de festival tem "cine-teatro" de grupo chileno Índice
|