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Crise do drama
Festival de Curitiba mostra o esfacelamento de fronteira entre teatro e artes plásticas; o trabalho de cenógrafos ascende a um primeiro plano e faz com que cenário, luz e trilha deixem de ser elementos ilustrativos
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
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O ator Germano Mello, em cena de ‘Travesties’, com direção de Caetano Vilela
GUSTAVO FIORATTI
ENVIDADO ESPECIAL A CURITIBA
No momento em que o ator
Ranieri Gonzales toma impulso para um mergulho de cabeça
contra a parede cenográfica do
espetáculo "Vida", fica em suspensão não só o ritmo alucinante de uma peça cheia de dilemas íntimos, com base na
obra de Paulo Leminski, mas
também uma espécie de simbologia metalinguística apontando o esfacelamento de fronteiras entre expressões artísticas,
mais especificamente entre
teatro e artes visuais.
Com essa peça sobretudo,
mas também em "Cinema", de
Felipe Hirsch, "Travesties", da
Companhia de Ópera Seca, e
"Um Navio no Espaço ou Ana
Cristina César", dirigida por
Paulo José, o festival representou um grupo de encenadores
empenhados em reverter
uma tradicional hierarquia das
artes cênicas. Nestes trabalhos,
cenário, luz e trilha sonora
deixam de ser elementos
ilustrativos.
Sinais dos tempos, estavam
presentes na mostra contemporânea desta edição do festival cenografias assinadas por
Daniela Thomas ("Cinema"),
William Pereira ("Travesties"),
Márcio Medina ("Till, a Saga de
um Herói Torto") e Bia Lessa
("Formas Breves"). São nomes
habituados a lidar com essa
quebra; todos eles já exerceram
alguma outra representação artística, ou como diretores, ou
como escritores e intérpretes,
ou como escultores até.
"Estive na Bienal de Veneza
de 2009, e ali ficou muito evidente que as fronteiras entre
expressões artísticas caducaram", diz Daniela Thomas. Sua
cenografia para "Cinema" praticamente fundamenta a composição dramatúrgica da peça.
É sobre o cenário, pensado
também por Hirsch antes do
texto, que surge o protagonista
de uma história: o próprio cinema. Não é literal, mas está ali "o
retrato de uma sala de rua de
São Paulo, dessas que estão desaparecendo", define o diretor.
A iluminação reflete no rosto
dos personagens, sentados numa plateia, a luz emitida por
um projetor. Foi concebida por
Beto Bruel, iluminador que já
venceu três vezes o Shell.
De volta ao ator que se jogou
contra o cenário de "Vida",
atravessando uma de suas paredes, rasgando com o próprio
corpo um ambiente onírico e
claustrofóbico: quão próximo
estaria ele de uma ação performática, expressão hoje mais relacionada às artes visuais?
Muito próximo, responde o
diretor da peça, Márcio Abreu.
"A interface com artes de outra
natureza abre o campo de leitura do texto." Por trás daquela
cena, existe um trabalho de materiais. O próprio cenógrafo,
Fernando Marés, ganhou arranhões, testando a possibilidade
de romper a parede com o corpo. Faz lembrar a dupla Marina
Abramovic e Ulay em "Interruption in Space", de 1977, em
que ambos se jogam contra a
parede à exaustão.
O cenário de "Travesties" é
outro exemplo, chegou ao teatro Guaíra em dois caminhões.
Um amontoado de jornais e livros, além de mesas e cadeiras,
que William Pereira usou para
compor um tipo de fundo grandioso, mais comum em óperas,
com estética acentuada pela
iluminação do diretor Caetano
Vilela. Impactante, o que era
fundo veio à frente do espetáculo. Especialmente na chuva
de livros do primeiro ato.
Para a curadora do festival,
Tânia Brandão, a ascensão do
trabalho de cenógrafos a um
primeiro plano reflete o aprofundamento de pesquisas que,
em parte, deriva do suporte financeiro de políticas públicas e
leis de incentivo. "Se não fosse
esse inchaço, acho que não teríamos conseguido fazer essa
representação na Mostra Contemporânea", diz. Para o diretor do festival, o exemplo contrário é a própria edição do ano
passado, que minguou por contra da crise mundial.
O repórter GUSTAVO FIORATTI viaja a convite
do Festival de Teatro de Curitiba
Veja infográfico com o
melhor e o pior de Curitiba
www.folha.com.br/100863
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