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RESENHA DA SEMANA
Édipo cristão
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Quem lê "O
Eleito" (1951), de
Thomas Mann
(1875-1955), logo
entende o que
fascinou o escritor alemão, autor do "Doutor
Fausto", no poema épico medieval de Hartmann von Aue
(1165-1215), em que se baseou
para reescrever a lenda do santo que, nascido do pecado do
incesto, chega a Papa depois de
anos de penitência.
Hartmann von Aue fez uma
das alegorias mais bem-sucedidas do princípio cristão da redenção pela penitência, com
objetivos didáticos. Mann, por
sua vez, usa o mito de "Gregorius" para expor, por meio de
uma fábula humorada e comovente, tendo por cenário uma
Idade Média imaginária, como
o cristianismo se tornou uma
das idéias mais geniais e poderosas da história ao operar uma
perversão da lógica.
O princípio do cristianismo é
a contradição. Para o cristianismo, o ser humano, feito à imagem de Deus, é contradição.
Como pode nascer em pecado
se procriar é uma virtude? Como sua vida pode ser compreendida como uma chance
de expiação se a própria existência já é pecado? A lenda de
Gregório faz a alegoria dessa
contradição ao narrar uma
epopéia inteiramente fundada
no incesto.
O rei e a rainha de Flandres
tentam há anos produzir um
herdeiro, inutilmente. Fazem
suas preces. Finalmente a rainha dá à luz um casal de gêmeos, mas não sobrevive ao
parto. "Nós nascemos da morte", dirá o irmão à irmã, anos
mais tarde, ao seduzi-la.
Os gêmeos crescem e, com a
morte do pai (que por sua vez
já nutria sentimentos incestuosos em relação à filha), não resistem mais ao desejo que sentem um pelo outro. A irmã fica
grávida do irmão e dá à luz um
menino.
O irmão, ao mesmo tempo
pai e tio da criança (Mann insiste no poder do incesto de engendrar a desordem da linguagem, uma perda primordial
dos sentidos que a religião vai
tentar administrar com uma
economia de culpa e perdão),
sai pelo mundo em busca de
penitência e morre. A criança é
jogada ao mar num barril, acaba sendo salva por pescadores
e é criada por um abade numa
ilha remota.
Aos dezessete anos, ao descobrir sua verdadeira origem, o
rapaz, agora chamado Gregório, sai à procura dos pais, com
a idéia fixa de poder perdoá-los
para também encontrar a salvação. Em sua peregrinação, liberta o reino sitiado de uma
rainha e se casa com ela, como
Édipo, sem saber que é a própria mãe.
A única diferença do mito
grego é que, ao descobrir que
vive e reproduz o mesmo pecado que está na sua origem, Gregório vai sair em errância pelo
mundo, tentando expiar o pecado pela própria humilhação,
até ser reduzido a verme, quando a misericórdia de Deus, em
reconhecimento à sua penitência, fará com que se torne Papa.
No epílogo, numa tirada irônica, Mann adverte pela boca
de seu narrador: "Que ninguém que se deixou entreter
por esta história tire dela falsa
moral e pense que, afinal, o pecado é coisa fácil".
Logo em seguida, vai lembrar
o que está em jogo na moral
cristã: "...É sábio adivinhar no
pecador um eleito, e isso também é sábio para o próprio pecador. Pois a noção da possibilidade de ser eleito pode dignificá-lo e tornar fecundos os
seus pecados, proporcionando-lhe vôos mais altos".
A idéia da penitência como
missão é, assim, o que permite
sobreviver a despeito das piores intempéries, sem expectativas em relação ao que não pode
ser alcançado mas sempre na
esperança da graça divina.
A grande invenção do cristianismo foi criar uma contradição que encobrisse o abismo e a
falta de sentido da existência
humana para, no lugar da catarse que a tragédia grega propunha pela arte, oferecer a solução simplista da misericórdia.
O Deus cristão precisa do pecado. Sendo Cristo o Deus dos
pecadores, não haveria necessidade de sua existência, assim
como não poderia haver vida
nem virtude, se não houvesse
pecado. É o pecado que põe o
mundo cristão em movimento,
num processo cíclico de culpa e
expiação. O Deus cristão é
aquele que ao mesmo tempo
condena os pecado e se comove com eles, para curiosamente
perdoá-los num movimento
ininterrupto. O pecado é, no
fundo, o grande bem do cristianismo. Se existir já é pecado,
tudo passa a ser relativo. É pecado copular e não copular. É
pecado nascer mas também
não deixar nascer. Tudo depende da situação e do momento. Não importa o que você faça, porque sempre estará
em pecado para que, pela culpa, possa alcançar a virtude.
"Por que eu nasci? Deus amaldiçoou a hora em que nasci!",
diz Gregório ao descobrir que
está casado com a mãe.
Virtude e pecado passam a
ser os dois lados da mesma
moeda. Não há virtude sem pecado no cristianismo. A não ser
no dogma, no que não tem lógica, na virgem que também é
mãe. É esse o grande paradoxo
do cristianismo, cuja alegoria a
releitura de Thomas Mann,
agora reeditada no Brasil,
transforma numa preciosidade
da literatura.
Avaliação:
Livro: O Eleito
Autor: Thomas Mann
Tradutora: Lya Luft
Editora: Mandarim
Quanto: R$ 29,50 (272 págs.)
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