São Paulo, sábado, 29 de abril de 2000


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WALTER SALLES

Os auto-retratos de Sebastião Salgado

O fotógrafo francês Robert Doisneau, um dos maiores representantes da fotografia humanista do pós-guerra, recusava-se a comentar as suas próprias imagens. Era um homem incomum, que também recusava a prática do sensacionalismo e achava que nem tudo deveria ser mostrado.
Uma vez, Doisneau estava fotografando um pastor e suas ovelhas no interior da França, quando um caminhão atropelou parte do rebanho. Ele optou por não registrar o desespero do pastor. Abandonou a câmera no chão e foi ajudar o homem a salvar os animais feridos.
Numa época de crescente poluição visual, de multiplicação dos sinais eletrônicos e dos signos publicitários, Doisneau achava que a fotografia ainda podia ter um "papel purificador", que diluísse o que ele chamava de "anestesia do olhar".
Doisneau morreu há seis anos, mas penso que ele teria ficado feliz em ver o ensaio magistral de Sebastião Salgado sobre as migrações no final do milênio, "Êxodos", lançado há pouco no Brasil. As 363 fotos em preto-e-branco do livro são acompanhadas por um segundo volume de imagens igualmente impactantes, "Retratos de Crianças do Êxodo", colhidas nas mais diversas latitudes.
O resultado ultrapassa o simples ato de informar e adquire uma qualidade reveladora. Somos convidados a nos deter, com tempo, sobre situações que já vimos velozmente, de forma descontextualizada, na televisão.
Não se chega a esse nível de densidade por acaso. "Êxodos" é o fruto de um trabalho vertical, feito ao longo de seis anos e em 35 países. Durante esse período, Salgado acompanhou populações que migravam nas mais diversas partes do mundo, dos "wetbacks" mexicanos às minorias vietnamitas, passando pelas vítimas da guerra na África e no Leste Europeu. Seguiu, também, o movimento dos sem-terra no Brasil e dos zapatistas em Chiapas, no México.
É um trabalho que nos confronta com a inesperada dimensão do exílio contemporâneo e que retrata a tragédia mundial da exclusão de forma cortante e irrefutável.
Imagino que os mais afoitos possam querer taxar o trabalho de Salgado de "miserabilidade", mas estamos aqui muito além da simples denúncia ou da utilização aética da pobreza. Ao contrário, a impressão que se tem é que Salgado se solidariza com quem está fotografando e nos convida a participar dessa comunhão que estabeleceu. As fotos dão dignidade e tratam com respeito aqueles que vivem situações dramáticas. Na época do voyeurismo sem limites e da exploração da dor, essa atitude não é um gesto qualquer.
Os retratos das crianças do êxodo também evidenciam essa preocupação com uma ética do olhar. São 83 "portraits" de crianças, olhando diretamente para a câmera de Salgado, olhando diretamente para nós. Não há máscara, teatralização, dramatização da imagem. Há apenas os rostos de crianças que envelheceram cedo demais. Uma constatação, que recontextualiza e faz pensar.
Alguém disse de outro grande fotógrafo contemporâneo, o suíço-americano Robert Frank, que suas imagens eram inesquecíveis porque ele não se limitava a testemunhar, a mostrar. Ele se mostrava. Talvez o mesmo possa ser dito das imagens de Sebastião Salgado. O impacto que elas geram transcende a questão da denúncia ou da beleza visual que elas certamente têm. Todas as suas imagens são auto-retratos, no sentido em que são portadoras das preocupações de um homem inconformado com aquilo que vê.
Salgado não é um artista que vai contra a tradição da fotografia humanista desenvolvida por Cartier-Bresson, mas que a aprofunda. Nas suas mãos, a fotografia, inventada durante a Revolução Industrial consegue mostrar, em plena era da informática, que parte do mundo ainda vive em condições medievais. É um trabalho de sopro épico, que interroga sem tentar propor soluções dogmáticas.
"Êxodos" evidencia sobretudo a falência dos sistemas políticos e econômicos tradicionais. Mas como mudar esse estado de coisas? Falando sobre isso, o cineasta e pensador Carlos Diegues me dizia há poucos dias que "a inércia está ganhando da possibilidade de transformação do mundo". Diegues sustenta a tese de que a insatisfação está bloqueada pela ideologia da impossibilidade de mudança. É o que ele chama de "sequestro da vontade".
No bojo dessa constatação, ouvimos constantemente que nada pode ser feito para mudar as esferas cronicamente viciadas do poder, da política, da polícia etc. Na área cultural, o discurso é outro, embora o fim seja o mesmo: tudo já está feito, e o que foi realizado no passado sempre é melhor do que aquilo que se tenta fazer no presente etc.
De alguma forma, os ensaios de Sebastião Salgado -como "Outras Américas", "Trabalhadores", "Terra" e "Êxodos"- funcionam como um antídoto para essa situação. Provam que ainda há muito que pode ser feito. São o resultado de uma insatisfação que se manifesta catarticamente, por meio de imagens viscerais e inesquecíveis. Nos convidam, também, a manifestar a nossa insatisfação.
Não sei se você já está cansado de ouvir que toda transformação é utópica. Eu estou. Como diz um jovem de 98 anos de idade, o naturalista e filósofo Théodore Monod, a utopia é aquilo que ainda não foi tentado.



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