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WALTER SALLES
Os auto-retratos de Sebastião Salgado
O fotógrafo francês Robert Doisneau, um dos maiores representantes da fotografia humanista do
pós-guerra, recusava-se a comentar as suas próprias imagens. Era
um homem incomum, que também recusava a prática do sensacionalismo e achava que nem tudo deveria ser mostrado.
Uma vez, Doisneau estava fotografando um pastor e suas ovelhas no interior da França, quando um caminhão atropelou parte
do rebanho. Ele optou por não registrar o desespero do pastor.
Abandonou a câmera no chão e
foi ajudar o homem a salvar os
animais feridos.
Numa época de crescente poluição visual, de multiplicação dos
sinais eletrônicos e dos signos publicitários, Doisneau achava que
a fotografia ainda podia ter um
"papel purificador", que diluísse o
que ele chamava de "anestesia do
olhar".
Doisneau morreu há seis anos,
mas penso que ele teria ficado feliz em ver o ensaio magistral de
Sebastião Salgado sobre as migrações no final do milênio, "Êxodos", lançado há pouco no Brasil.
As 363 fotos em preto-e-branco do
livro são acompanhadas por um
segundo volume de imagens
igualmente impactantes, "Retratos de Crianças do Êxodo", colhidas nas mais diversas latitudes.
O resultado ultrapassa o simples
ato de informar e adquire uma
qualidade reveladora. Somos convidados a nos deter, com tempo,
sobre situações que já vimos velozmente, de forma descontextualizada, na televisão.
Não se chega a esse nível de densidade por acaso. "Êxodos" é o
fruto de um trabalho vertical, feito ao longo de seis anos e em 35
países. Durante esse período, Salgado acompanhou populações
que migravam nas mais diversas
partes do mundo, dos "wetbacks"
mexicanos às minorias vietnamitas, passando pelas vítimas da
guerra na África e no Leste Europeu. Seguiu, também, o movimento dos sem-terra no Brasil e
dos zapatistas em Chiapas, no
México.
É um trabalho que nos confronta com a inesperada dimensão do
exílio contemporâneo e que retrata a tragédia mundial da exclusão
de forma cortante e irrefutável.
Imagino que os mais afoitos
possam querer taxar o trabalho
de Salgado de "miserabilidade",
mas estamos aqui muito além da
simples denúncia ou da utilização
aética da pobreza. Ao contrário, a
impressão que se tem é que Salgado se solidariza com quem está fotografando e nos convida a participar dessa comunhão que estabeleceu. As fotos dão dignidade e
tratam com respeito aqueles que
vivem situações dramáticas. Na
época do voyeurismo sem limites
e da exploração da dor, essa atitude não é um gesto qualquer.
Os retratos das crianças do êxodo também evidenciam essa preocupação com uma ética do olhar.
São 83 "portraits" de crianças,
olhando diretamente para a câmera de Salgado, olhando diretamente para nós. Não há máscara,
teatralização, dramatização da
imagem. Há apenas os rostos de
crianças que envelheceram cedo
demais. Uma constatação, que recontextualiza e faz pensar.
Alguém disse de outro grande
fotógrafo contemporâneo, o suíço-americano Robert Frank, que
suas imagens eram inesquecíveis
porque ele não se limitava a testemunhar, a mostrar. Ele se mostrava. Talvez o mesmo possa ser dito
das imagens de Sebastião Salgado. O impacto que elas geram
transcende a questão da denúncia
ou da beleza visual que elas certamente têm. Todas as suas imagens são auto-retratos, no sentido
em que são portadoras das preocupações de um homem inconformado com aquilo que vê.
Salgado não é um artista que
vai contra a tradição da fotografia humanista desenvolvida por
Cartier-Bresson, mas que a aprofunda. Nas suas mãos, a fotografia, inventada durante a Revolução Industrial consegue mostrar,
em plena era da informática, que
parte do mundo ainda vive em
condições medievais. É um trabalho de sopro épico, que interroga
sem tentar propor soluções dogmáticas.
"Êxodos" evidencia sobretudo a
falência dos sistemas políticos e
econômicos tradicionais. Mas como mudar esse estado de coisas?
Falando sobre isso, o cineasta e
pensador Carlos Diegues me dizia
há poucos dias que "a inércia está
ganhando da possibilidade de
transformação do mundo". Diegues sustenta a tese de que a insatisfação está bloqueada pela ideologia da impossibilidade de mudança. É o que ele chama de "sequestro da vontade".
No bojo dessa constatação, ouvimos constantemente que nada
pode ser feito para mudar as esferas cronicamente viciadas do poder, da política, da polícia etc. Na
área cultural, o discurso é outro,
embora o fim seja o mesmo: tudo
já está feito, e o que foi realizado
no passado sempre é melhor do
que aquilo que se tenta fazer no
presente etc.
De alguma forma, os ensaios de
Sebastião Salgado -como "Outras Américas", "Trabalhadores",
"Terra" e "Êxodos"- funcionam
como um antídoto para essa situação. Provam que ainda há
muito que pode ser feito. São o resultado de uma insatisfação que
se manifesta catarticamente, por
meio de imagens viscerais e inesquecíveis. Nos convidam, também, a manifestar a nossa insatisfação.
Não sei se você já está cansado
de ouvir que toda transformação
é utópica. Eu estou. Como diz um
jovem de 98 anos de idade, o naturalista e filósofo Théodore Monod, a utopia é aquilo que ainda
não foi tentado.
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