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"NELSON FREIRE"
Maior pianista brasileiro se fecha em documentário
Filme é simpático, reticente, frustrante
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Boa parte do público de
concertos, diz o autor deste
documentário, "gosta de ver o seu
pianista dando golpes de braço à
direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. Com Nelson Freire isso
nunca acontece".
Para João Moreira Salles, "é como se Freire dissesse: "Prestem
atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance".
E suspeito também que se trate de
uma questão de recato".
Com efeito, recato é o que não
falta neste documentário sobre o
maior pianista brasileiro. Nelson
Freire toca muito e fala pouquíssimo. O público de música clássica
certamente não tem do que se
queixar: há peças que são executadas na íntegra, e mesmo duas
vezes em seguida (a "Melodia" da
ópera "Orfeu e Eurídice" de
Gluck, uma vez numa gravação
de Guiomar Novaes, logo em seguida por Nelson Freire).
Há trechos generosos do "Concerto nš 2" de Rachmaninov, da
"Fantasia op. 17" de Schumann,
do "Concerto nš 2" de Brahms,
além de ótimas cenas de Nelson
Freire em duo com sua amiga
Martha Argerich, explorando peças menos conhecidas do repertório ("Bailecito", de Carlos Guastavino).
Mesmo os admiradores de Nelson Freire podem se sentir frustrados, entretanto, com as reticências do pianista e, por extensão, do próprio documentário.
Não que fosse o caso de cobrar
muitos detalhes biográficos (embora a leitura das cartas que Nelson Freire recebeu de seu pai e de
sua professora, ainda no começo
da carreira, constituam o ponto
alto do filme).
O problema é que, mesmo
quando poderia falar a respeito de
algum compositor, de algum trecho musical, ou talvez de algum
pianista que o tivesse influenciado, o sempre simpático Nelson
Freire se fecha. Pára as frases no
meio do caminho, acena vagamente para algum lugar, sorri, encabula-se, embatuca: é como se a música, para ele, tivesse tal eloquência que todo comentário fosse supérfluo.
Está certo -mas o filme tampouco registra opiniões de críticos, estudiosos, personalidades
do mundo musical sobre Nelson
Freire. Nem demonstra um trabalho mais extenso de pesquisa. Do
ponto de vista informativo e jornalístico, tudo fica assim muito
frustrante.
Em alguns minutos, contudo,
temos um pequeno exemplo do
que o documentário poderia ser,
se houvesse mais empenho nesse
aspecto. É quando o pianista está
às voltas com uma difícil passagem em oitavas do concerto de
Brahms.
Primeiro, ele aparece estudando
exaustivamente o trecho, com o
metrônomo. Todo aquele árduo
trabalho se torna imperceptível
num passe de mágica quando em
seguida o trecho é executado, em
pianíssimo, num recital ao vivo.
Nelson Freire não precisou falar,
explicar, comentar nada -mas o
documentário, nesse momento,
esclarece para o espectador um
pouco da arte do pianista.
Foi só um breve momento. O
jogo entre o privado e o público,
entre timidez e exibição, que
aquela cena exemplificava tão
bem -e com tanto acréscimo de
prazer e compreensão para quem
gosta de música clássica-, cede
lugar a cenas de puro embaraço e
de constrangedora domesticidade. As de Nelson Freire conversando com sua cachorra Danuza,
agradecendo os fãs depois do
concerto ou assistindo a um vídeo
de Rita Hayworth e Fred Astaire
são de um vazio de dar dó.
O carinho que o público dedica
ao pianista (no Brasil, ele é sempre chamado de "Nelson", a
exemplo do que acontecia com
"Guiomar") certamente desculpará as insuficiências deste documentário. As obras que ele toca, e
sua imensa arte como intérprete,
mereceriam muito mais.
Nelson Freire
Produção: Brasil, 2003
Direção: João Moreira Salles
Quando: a partir de 2 de maio
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