|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA/"KINSEY"
Protagonista de biografia sobre o "Dr. Sexo", o irlandês Liam Neeson critica neopuritanismo da era Bush
'Relação dos EUA com sexo é esquizofrênica'
DA CALIFÓRNIA
A maioria da população norte-americana condena o casamento
homossexual, uma parcela importante do país é contra o aborto
e o ocupante da Casa Branca só libera verbas federais a escolas que
encorajam a abstinência como
forma de educação sexual e criticam o uso de preservativos. Estamos nos anos 50, estamos em
2005. "Kinsey - Vamos Falar de
Sexo", que estréia hoje em São
Paulo, é ao mesmo tempo metáfora e elo de ligação entre esses
dois países, os Estados Unidos.
A biografia de Alfred Charles
Kinsey (1895-1956), o zoólogo que
se transforma por necessidade intelectual no primeiro sexólogo
norte-americano, choca e, ao
mesmo tempo, desperta a América com duas amplas pesquisas sobre os hábitos sexuais dos nativos,
é o tema do filme de Bill Condon,
baseado no romance "The Inner
Circle", de T.C. Boyle, que inventa
um assistente para contar a vida
de quem entraria para a história
como o "Dr. Sexo".
Para interpretá-lo, foi escalado
o suave irlandês Liam Neeson, 52.
Leia sua entrevista à Folha.
(SÉRGIO DÁVILA)
Folha - Meio século depois, Alfred
Kinsey continua a chocar os EUA,
agora como filme. O país continua,
na essência, puritano?
Liam Neeson - Nós vivemos na
era do neoconservadorismo. Todos os Estados que incluíram casamentos gays em suas cédulas
nas últimas eleições tiveram essa
proposta rejeitada, por exemplo,
o que mostra, mais do que intolerância, homofobia. A direita religiosa está nos levando de volta
aos anos 50 e para antes ainda, para a América pré-Kinsey. Por conta de iniciativas governamentais,
nossos adolescentes vivem sob a
ignorância e o medo. Ao mesmo
tempo, nunca a indústria pornográfica faturou tanto. A relação
deste país com o sexo é esquizofrênica, no mínimo.
Folha - Um dos lados parece estar
vencendo, não?
Neeson - É, eu sei. Mas acho que
essa dicotomia existe desde que a
República foi fundada, bancada
por puritanos de um lado e liberais do outro. Não se esqueça de
que este é o mesmo país que têm
ou teve até recentemente programas na TV paga incrivelmente
ousados, como "Sex and the
City", em que um bando de mulheres discutiam sexo oral, milhões de pessoas assistindo a programas premiados como "Queer
Eye for the Straight Guy" e "The L
Word"... Mas, é claro, com o incidente das glândulas mamárias de
Janet Jackson, tudo mudou de novo [na final do futebol americano
de 2004, o evento de maior audiência televisiva nos EUA, a cantora expôs o seio direito em show
no intervalo do jogo; desde então,
a emissora que exibia o programa
foi multada pelo órgão regulador
e o episódio tem sido usado pelos
conservadores como marco da
decadência moral do país]...
Mas há um lado bom nisso tudo. Controvérsia pode ser o combustível da mudança social.
Quando o livro de Kinsey sobre a
sexualidade feminina foi lançado,
em 1953, o financiamento para
suas pesquisas foi cancelado, mas
dois anos depois o American Bar
Institute [o equivalente norte-americano à OAB] praticamente
reescreveu seu código, e a cada
duas páginas o relatório de Kinsey
era citado, o que levou vários Estados a descriminar, por exemplo,
sexo oral ou sexo consensual entre dois adultos não-casados, práticas que parecem corriqueiras
hoje, mas que eram ilegais.
Folha - O sr. espera que a controvérsia do filme ajude a mudar algo?
Neeson - Sinceramente, espero.
Quando anunciei que iria participar deste filme, minha mãe passou a receber cartas ameaçadoras.
E ela vive na Irlanda! Além disso,
um grupo de direita tentou colocar um anúncio de página inteira
na "Variety" [a principal revista
da indústria cinematográfica] dizendo que Kinsey tinha realizado
experiências em crianças do tipo
das que os nazistas fizeram. A revista, é claro, se recusou a publicar. Depois, aquela mulher [Judith Reisman, pesquisadora norte-americana que escreveu um livro sobre o sexólogo] deu entrevistas dizendo com todas as letras
que Kinsey era pedófilo, o que é
uma completa mentira.
Folha - Quanto o sr. pesquisou
para interpretar o papel?
Neeson - Li quatro ou cinco biografias e ouvi muitas fitas, inclusive uma palestra que Kinsey deu
um ano antes de morrer, de duas
horas e meia. Ele teve de interrompê-la no meio porque já estava muito doente, e a chave para
mim foi ouvir sua voz e me concentrar nela. Você percebe que o
auditório está cheio, muita gente
falando, ele começa o seminário
com uma voz frágil e falha, mas,
quando chega ao assunto que o
interessa, que é a sexualidade humana, sua voz ganha força, brilho,
como se fosse jovem de novo.
Folha - E quanto ao fato de ele ser
bissexual, como o sr. optou por se
aproximar do tema?
Neeson - Ele experimentou alguns aspectos do sexo, creio, porque dessa maneira ele conheceria
mais pessoas que pudessem ser
pesquisadas, e Kinsey tinha um
desejo quase sobre-humano de
sentir o que seus pesquisados sentiam. Mas não encontrei em seus
escritos nada que indicasse que
ele tivesse experimentado, por
exemplo, voyeurismo, sadismo,
masoquismo -e ele chegou a ser
criticado por seus colegas do instituto por isso! Mas ele era bissexual e sofreu muito quando criança por conta disso. Acho que vem
daí seu desejo de que nenhuma
pessoa se sinta discriminada pela
maneira com que se relaciona
com o sexo. Nesse sentido, era um
reformista social, embora nunca
tenha aceitado esse papel.
Folha - Fazer o filme o ajudou a lidar com a sua própria sexualidade?
Neeson - [Risos] Percebi quanta
variedade existe! Isso mostra o
quão particular somos. Mas, não,
não me mudou sexualmente...
Texto Anterior: Hipersônicas Próximo Texto: Crítica: Bill Condon lança luz sobre revolucionário do sexo Índice
|