São Paulo, sexta-feira, 29 de abril de 2005

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CINEMA/"KINSEY"

Protagonista de biografia sobre o "Dr. Sexo", o irlandês Liam Neeson critica neopuritanismo da era Bush

'Relação dos EUA com sexo é esquizofrênica'

DA CALIFÓRNIA

A maioria da população norte-americana condena o casamento homossexual, uma parcela importante do país é contra o aborto e o ocupante da Casa Branca só libera verbas federais a escolas que encorajam a abstinência como forma de educação sexual e criticam o uso de preservativos. Estamos nos anos 50, estamos em 2005. "Kinsey - Vamos Falar de Sexo", que estréia hoje em São Paulo, é ao mesmo tempo metáfora e elo de ligação entre esses dois países, os Estados Unidos.
A biografia de Alfred Charles Kinsey (1895-1956), o zoólogo que se transforma por necessidade intelectual no primeiro sexólogo norte-americano, choca e, ao mesmo tempo, desperta a América com duas amplas pesquisas sobre os hábitos sexuais dos nativos, é o tema do filme de Bill Condon, baseado no romance "The Inner Circle", de T.C. Boyle, que inventa um assistente para contar a vida de quem entraria para a história como o "Dr. Sexo".
Para interpretá-lo, foi escalado o suave irlandês Liam Neeson, 52. Leia sua entrevista à Folha.
(SÉRGIO DÁVILA)

 

Folha - Meio século depois, Alfred Kinsey continua a chocar os EUA, agora como filme. O país continua, na essência, puritano?
Liam Neeson -
Nós vivemos na era do neoconservadorismo. Todos os Estados que incluíram casamentos gays em suas cédulas nas últimas eleições tiveram essa proposta rejeitada, por exemplo, o que mostra, mais do que intolerância, homofobia. A direita religiosa está nos levando de volta aos anos 50 e para antes ainda, para a América pré-Kinsey. Por conta de iniciativas governamentais, nossos adolescentes vivem sob a ignorância e o medo. Ao mesmo tempo, nunca a indústria pornográfica faturou tanto. A relação deste país com o sexo é esquizofrênica, no mínimo.

Folha - Um dos lados parece estar vencendo, não?
Neeson -
É, eu sei. Mas acho que essa dicotomia existe desde que a República foi fundada, bancada por puritanos de um lado e liberais do outro. Não se esqueça de que este é o mesmo país que têm ou teve até recentemente programas na TV paga incrivelmente ousados, como "Sex and the City", em que um bando de mulheres discutiam sexo oral, milhões de pessoas assistindo a programas premiados como "Queer Eye for the Straight Guy" e "The L Word"... Mas, é claro, com o incidente das glândulas mamárias de Janet Jackson, tudo mudou de novo [na final do futebol americano de 2004, o evento de maior audiência televisiva nos EUA, a cantora expôs o seio direito em show no intervalo do jogo; desde então, a emissora que exibia o programa foi multada pelo órgão regulador e o episódio tem sido usado pelos conservadores como marco da decadência moral do país]...
Mas há um lado bom nisso tudo. Controvérsia pode ser o combustível da mudança social. Quando o livro de Kinsey sobre a sexualidade feminina foi lançado, em 1953, o financiamento para suas pesquisas foi cancelado, mas dois anos depois o American Bar Institute [o equivalente norte-americano à OAB] praticamente reescreveu seu código, e a cada duas páginas o relatório de Kinsey era citado, o que levou vários Estados a descriminar, por exemplo, sexo oral ou sexo consensual entre dois adultos não-casados, práticas que parecem corriqueiras hoje, mas que eram ilegais.

Folha - O sr. espera que a controvérsia do filme ajude a mudar algo?
Neeson -
Sinceramente, espero. Quando anunciei que iria participar deste filme, minha mãe passou a receber cartas ameaçadoras. E ela vive na Irlanda! Além disso, um grupo de direita tentou colocar um anúncio de página inteira na "Variety" [a principal revista da indústria cinematográfica] dizendo que Kinsey tinha realizado experiências em crianças do tipo das que os nazistas fizeram. A revista, é claro, se recusou a publicar. Depois, aquela mulher [Judith Reisman, pesquisadora norte-americana que escreveu um livro sobre o sexólogo] deu entrevistas dizendo com todas as letras que Kinsey era pedófilo, o que é uma completa mentira.

Folha - Quanto o sr. pesquisou para interpretar o papel?
Neeson -
Li quatro ou cinco biografias e ouvi muitas fitas, inclusive uma palestra que Kinsey deu um ano antes de morrer, de duas horas e meia. Ele teve de interrompê-la no meio porque já estava muito doente, e a chave para mim foi ouvir sua voz e me concentrar nela. Você percebe que o auditório está cheio, muita gente falando, ele começa o seminário com uma voz frágil e falha, mas, quando chega ao assunto que o interessa, que é a sexualidade humana, sua voz ganha força, brilho, como se fosse jovem de novo.

Folha - E quanto ao fato de ele ser bissexual, como o sr. optou por se aproximar do tema?
Neeson -
Ele experimentou alguns aspectos do sexo, creio, porque dessa maneira ele conheceria mais pessoas que pudessem ser pesquisadas, e Kinsey tinha um desejo quase sobre-humano de sentir o que seus pesquisados sentiam. Mas não encontrei em seus escritos nada que indicasse que ele tivesse experimentado, por exemplo, voyeurismo, sadismo, masoquismo -e ele chegou a ser criticado por seus colegas do instituto por isso! Mas ele era bissexual e sofreu muito quando criança por conta disso. Acho que vem daí seu desejo de que nenhuma pessoa se sinta discriminada pela maneira com que se relaciona com o sexo. Nesse sentido, era um reformista social, embora nunca tenha aceitado esse papel.

Folha - Fazer o filme o ajudou a lidar com a sua própria sexualidade?
Neeson -
[Risos] Percebi quanta variedade existe! Isso mostra o quão particular somos. Mas, não, não me mudou sexualmente...


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