São Paulo, sábado, 29 de abril de 2006

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DRAUZIO VARELLA

O negociador

Carlito era um negociador de habilidade reconhecida por seus pares. Na verdade, nem se chamava Carlos, a alcunha vinha da adolescência, em razão da semelhança com o personagem de Charles Chaplin.
Quem o visse, magrinho, tímido, não seria capaz de imaginá-lo na função de carcereiro de um grande presídio, muito menos na guarita de segurança de uma fábrica. Mas a impressão de homem frágil, que pesava cada palavra antes de formar a frase, desaparecia de imediato ao vê-lo discutir com algum detento.
Nessas ocasiões, seu corpo adquiria a ginga e adotava o modo de falar da malandragem. As gírias, a inflexão da voz, a pobreza gramatical da fala e o olhar de esguelha com o queixo levantado contrastavam de tal forma com sua personalidade habitual que mais parecia um ator em cena.
A fama de exímio negociador não era gratuita: havia sido testada em duas grandes rebeliões e em meia dúzia de seqüestros de funcionários, mantidos em ponta de faca por presos amotinados.
Numa delas, com o pavilhão em chamas, foi levado para o telhado com vários colegas sob a mira de dezenas de estiletes e facões. Para confundir os atiradores de elite distribuídos pela polícia em pontos estratégicos, os rebelados obrigaram os reféns a trocar de calça com eles. Passaram horas na fumaça sob a ameaça de que seriam atirados para baixo ou mortos por algum atirador afoito. Foi o momento em que esteve mais próximo da morte:
- Na beirada do prédio, de olhos vendados, com uma faca no pescoço, dois ladrões com bafo de pinga ameaçando jogar a gente daquela altura, na mira da polícia com as armas engatilhadas, a probabilidade de acontecer alguma coisa errada é razoável.
Foi então que conseguiu se aproximar de um dos líderes da revolta, para explicar que não podia morrer por duas razões: primeiro, porque a mãe estava velha e não tinha outro filho; segundo, porque os demais funcionários se vingariam dos comandantes da rebelião. Os argumentos foram convincentes:
- Porque são as únicas coisas que o ladrão respeita: a mãe e a própria vida.
A experiência de vestir a calça-uniforme deve ter mexido com seus brios, porque, em outra oportunidade, feito refém com mais dois funcionários por detentos apanhados numa tentativa de fuga, ao receberem a ordem para trocar de calças, impediu os colegas de fazê-lo e encarou os algozes armados:
- Então vocês vão tirar as calças de três cadáveres. Já fiz essa palhaçada uma vez, não faço outra. A cara de vocês é ser ladrão, a nossa é de trabalhar para o Estado. Cada homem com seu destino, mano!
A partir desse episódio, passou a ser convocado sempre que havia motins; muitas vezes a pedido dos próprios ladrões, interessados em tratar com interlocutores de palavra.
Carlito morava com a mulher e a sogra, uma senhora italiana, sempre vestida de preto, num sobradinho no Chora Menino, perto do cemitério. O respeito que gozava no trabalho, no entanto, não encontrava correspondência no ambiente doméstico: a mulher tinha um relacionamento tumultuado com a mãe; uma dizia pau, a outra pedra, brigavam até por adotarem posições antagônicas nas tramas das novelas.
As duas só se punham de acordo quando a filha desfiava a ladainha de lamentações contra o marido: que ele não prestava atenção quando ela falava, que não a levava passear, que jogava muita roupa suja no cesto. Nesses momentos, a mãe largava tudo para postar-se ao lado da filha em atitude de solidariedade silenciosa, que irritava sobremaneira o genro.
Um dia, Carlito se encantou pela telefonista da fábrica. Conhecedor do gênio da mulher, entretanto, fez da discrição sua estratégia básica: encontravam-se exclusivamente no apartamento dela, duas ou três vezes por semana. Em casa, o excesso de trabalho servia de desculpa para os atrasos, acontecimentos que ofereciam à mulher um motivo a mais para atacá-lo com a anuência muda da mãe.
A tragédia ocorreu numa manhã em que ele madrugou para tomar café na casa da telefonista, antes de irem trabalhar. Enquanto os namorados esperavam o ônibus, a mulher desceu de um táxi acompanhada da mãe e se engalfinhou com a rival diante dos curiosos. Para Carlito, foi um custo separá-las e empurrar a namorada para dentro de um ônibus que a providência divina fez parar no ponto, naquele instante.
A sós com a mulher enfurecida, procurou explicar que eram apenas colegas de trabalho e que a outra o contratara para pregar um varal na área de serviço, procedimento pelo qual havia recebido a importância de R$ 25, agilmente retirados do bolso para confirmar a veracidade da explicação.
Incapaz de acalmar a mulher, que lhe dirigia impropérios a plenos pulmões, Carlito, enfim, berrou que não suportava mais a vida ao lado dela e da bruxa que a acompanhava e que o remédio era a separação.
Voltou para casa depois da meia-noite. Encontrou a mulher com a mesa posta:
- Estava uma seda. Em prantos, pediu desculpas pelo escândalo, jurou que o fato jamais se repetiria, não tinha razões para duvidar da história do varal. Mesmo assim, insisti que entre nós estava tudo acabado. Quando fomos deitar, praticamente abusou de mim.
No final, ele caiu no sono. Pouco depois, acordou com um objeto gelado no meio das pernas. A mulher segurava seu sexo entre as hastes afiadas de uma tesoura de costura:
- Vai embora, mas vai deixar uma lembrança, seu cachorro!
Mais tarde, ao comentar o incidente, Carlito diria:
- Fiquei lavado de suor. Foi a negociação mais difícil da minha vida.


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