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DRAUZIO VARELLA
O negociador
Carlito era um negociador
de habilidade reconhecida
por seus pares. Na verdade, nem
se chamava Carlos, a alcunha vinha da adolescência, em razão da
semelhança com o personagem de
Charles Chaplin.
Quem o visse, magrinho, tímido, não seria capaz de imaginá-lo
na função de carcereiro de um
grande presídio, muito menos na
guarita de segurança de uma fábrica. Mas a impressão de homem
frágil, que pesava cada palavra
antes de formar a frase, desaparecia de imediato ao vê-lo discutir
com algum detento.
Nessas ocasiões, seu corpo adquiria a ginga e adotava o modo
de falar da malandragem. As gírias, a inflexão da voz, a pobreza
gramatical da fala e o olhar de esguelha com o queixo levantado
contrastavam de tal forma com
sua personalidade habitual que
mais parecia um ator em cena.
A fama de exímio negociador
não era gratuita: havia sido testada em duas grandes rebeliões e
em meia dúzia de seqüestros de
funcionários, mantidos em ponta
de faca por presos amotinados.
Numa delas, com o pavilhão em
chamas, foi levado para o telhado
com vários colegas sob a mira de
dezenas de estiletes e facões. Para
confundir os atiradores de elite
distribuídos pela polícia em pontos estratégicos, os rebelados obrigaram os reféns a trocar de calça
com eles. Passaram horas na fumaça sob a ameaça de que seriam
atirados para baixo ou mortos
por algum atirador afoito. Foi o
momento em que esteve mais
próximo da morte:
- Na beirada do prédio, de olhos
vendados, com uma faca no pescoço, dois ladrões com bafo de
pinga ameaçando jogar a gente
daquela altura, na mira da polícia com as armas engatilhadas, a
probabilidade de acontecer alguma coisa errada é razoável.
Foi então que conseguiu se
aproximar de um dos líderes da
revolta, para explicar que não podia morrer por duas razões: primeiro, porque a mãe estava velha
e não tinha outro filho; segundo,
porque os demais funcionários se
vingariam dos comandantes da
rebelião. Os argumentos foram
convincentes:
- Porque são as únicas coisas
que o ladrão respeita: a mãe e a
própria vida.
A experiência de vestir a calça-uniforme deve ter mexido com
seus brios, porque, em outra oportunidade, feito refém com mais
dois funcionários por detentos
apanhados numa tentativa de fuga, ao receberem a ordem para
trocar de calças, impediu os colegas de fazê-lo e encarou os algozes
armados:
- Então vocês vão tirar as calças
de três cadáveres. Já fiz essa palhaçada uma vez, não faço outra.
A cara de vocês é ser ladrão, a
nossa é de trabalhar para o Estado. Cada homem com seu destino, mano!
A partir desse episódio, passou a
ser convocado sempre que havia
motins; muitas vezes a pedido dos
próprios ladrões, interessados em
tratar com interlocutores de palavra.
Carlito morava com a mulher e
a sogra, uma senhora italiana,
sempre vestida de preto, num sobradinho no Chora Menino, perto do cemitério. O respeito que gozava no trabalho, no entanto, não
encontrava correspondência no
ambiente doméstico: a mulher tinha um relacionamento tumultuado com a mãe; uma dizia pau,
a outra pedra, brigavam até por
adotarem posições antagônicas
nas tramas das novelas.
As duas só se punham de acordo quando a filha desfiava a ladainha de lamentações contra o
marido: que ele não prestava
atenção quando ela falava, que
não a levava passear, que jogava
muita roupa suja no cesto. Nesses
momentos, a mãe largava tudo
para postar-se ao lado da filha em
atitude de solidariedade silenciosa, que irritava sobremaneira o
genro.
Um dia, Carlito se encantou pela telefonista da fábrica. Conhecedor do gênio da mulher, entretanto, fez da discrição sua estratégia
básica: encontravam-se exclusivamente no apartamento dela,
duas ou três vezes por semana.
Em casa, o excesso de trabalho
servia de desculpa para os atrasos, acontecimentos que ofereciam à mulher um motivo a mais
para atacá-lo com a anuência
muda da mãe.
A tragédia ocorreu numa manhã em que ele madrugou para
tomar café na casa da telefonista,
antes de irem trabalhar. Enquanto os namorados esperavam o
ônibus, a mulher desceu de um
táxi acompanhada da mãe e se
engalfinhou com a rival diante
dos curiosos. Para Carlito, foi um
custo separá-las e empurrar a namorada para dentro de um ônibus que a providência divina fez
parar no ponto, naquele instante.
A sós com a mulher enfurecida,
procurou explicar que eram apenas colegas de trabalho e que a
outra o contratara para pregar
um varal na área de serviço, procedimento pelo qual havia recebido a importância de R$ 25, agilmente retirados do bolso para
confirmar a veracidade da explicação.
Incapaz de acalmar a mulher,
que lhe dirigia impropérios a plenos pulmões, Carlito, enfim, berrou que não suportava mais a vida ao lado dela e da bruxa que a
acompanhava e que o remédio
era a separação.
Voltou para casa depois da
meia-noite. Encontrou a mulher
com a mesa posta:
- Estava uma seda. Em prantos,
pediu desculpas pelo escândalo,
jurou que o fato jamais se repetiria, não tinha razões para duvidar da história do varal. Mesmo
assim, insisti que entre nós estava
tudo acabado. Quando fomos
deitar, praticamente abusou de
mim.
No final, ele caiu no sono. Pouco
depois, acordou com um objeto
gelado no meio das pernas. A mulher segurava seu sexo entre as
hastes afiadas de uma tesoura de
costura:
- Vai embora, mas vai deixar
uma lembrança, seu cachorro!
Mais tarde, ao comentar o incidente, Carlito diria:
- Fiquei lavado de suor. Foi a
negociação mais difícil da minha
vida.
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