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RODAPÉ
Escárnio e escombro
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Máquina Zero" e "Cinza
Ensolarada": a leitura
desses dois livros de poesia tão diferentes entre si produz uma espécie de choque térmico, mostrando como a literatura pode
criar experiências estéticas muito
diferentes a partir de percepções
comuns a dois escritores.
Onde Ricardo Aleixo é mordaz,
até o limite de uma rispidez que
não poupa ninguém (nem o próprio poeta), Ricardo Lima é contemplativo, nos confins de uma
melancolia que se compraz consigo mesma. Em ambos, temos como ponto de partida um negativismo que é causa e finalidade da
escrita.
"Aos poetas, dados/ à rapina como são,/ apraz versar/ sobre tudo
o que, morto/ ou vivo, existe, ao
que parece,/ só para acabar em livro", escreve Aleixo em poema
que fala da execução do terrorista
norte-americano Timothy
McVeigh e faz citações de Oswald
de Andrade, Drummond e Mallarmé para dissecar a mórbida
máquina do mundo: "Já nascemos meio mortos./ E continuamos a morrer".
"No retrato prata/ dos antepassados/ uma rua/ que não leva
mais/ para casa", diz Lima em alguns dos tantos versos em que os
traumas do presente (mortes, ausências, perdas) estão associados
às cinzas de memórias familiares
e reminiscências infantis.
Para ter idéia de como esses livros se inserem em suas trajetórias, porém, é preciso analisá-los
separadamente. "Máquina Zero"
é o quinto título de Aleixo e marca
uma mudança em relação à sintaxe decupada e às experiências etnopoéticas dos livros anteriores.
Destes, ele conserva a economia
formal e o sentido rítmico apurado, cuja mescla singular resultava
numa espécie de melodia pós-concretista. A tônica de "Máquina
Zero", contudo, é o escárnio e o
maldizer.
Embora alguns poemas sugiram um vanguardismo surrado,
que investe contra um suposto
conservadorismo poético ("prefiro a paciente/ proeza das traças,/
meu rapaz,/ aos versinhos/ bem
traçados/ dos quais/ te mostras
capaz"), Aleixo consegue manter
uma ironia que funciona de contraveneno para qualquer laivo de
mau humor panfletário.
Os melhores exemplos disso são
"Exercício de Lira Maldizente"
(obra de um Gregório de Matos
mineiro que satiriza as querelas
entre poetas) e "Paupéria Revisitada": "Poesia é pão (para/ o espírito, se diz), mas atenção:/ o padeiro da esquina balofa/ vive do
que faz; o mais/ fino poeta, não./
Poetas dão de graça/ o ar de sua
graça/ (e ainda troçam/ -na
companhia das traças-/ de tal
"nobre condição')".
E se em "Dois Exercícios de Língua Pária" sobram alfinetadas para um poeta como Nelson Ascher
(com quem, não obstante, ele partilha o gosto pelos períodos longos, cheios de orações subordinadas que serpenteiam em raciocínios intrincados), Aleixo não deixa de escarnecer de si mesmo, como prova a série "Teofagia", "Antropofagia" e "Autofagia".
Se "Máquina Zero" é uma metralhadora giratória que tudo "nadifica", "Cinza Ensolarada" é um
livro feito de escombros de experiências, em que aquilo que é acolhedor se conjuga no pretérito e
sobrevive apenas na memória.
Assim como em seus dois livros
anteriores, a poesia de Ricardo Lima tem altíssimo teor emocional,
mas consegue miraculosamente
escapar da pieguice, graças a um
tipo específico de objetividade
que percorre os versos desse livro
composto por poemas sem título.
Essa objetividade se dá pela evocação de recortes do real ("tacos
da casa soltos"; "folha na enxurrada") que irrompem como imagens fantasmáticas, recordação
nostálgica de um mundo precário, anterior ao naufrágio da voz
narrativa: "sonhos/ como cacos
de vidro/ afundam desde a infância".
Além disso, a estrutura dos versos, com verbos no infinitivo ("tirar da alma/ pitangas/ e do pão/
silêncio") e ausência quase total
de um "eu" poético, faz com que a
poesia de Ricardo Lima tenha como efeito paradoxal um lirismo
dessubjetivado, em que a realidade parece imantada pelo vazio.
Máquina Zero
Autor: Ricardo Aleixo
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 20 (64 págs.)
Cinza Ensolarada
Autor: Ricardo Lima
Editora: Azougue
Quanto: R$ 18 (72 págs.)
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