São Paulo, sábado, 29 de maio de 2004

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RODAPÉ

Escárnio e escombro

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Máquina Zero" e "Cinza Ensolarada": a leitura desses dois livros de poesia tão diferentes entre si produz uma espécie de choque térmico, mostrando como a literatura pode criar experiências estéticas muito diferentes a partir de percepções comuns a dois escritores.
Onde Ricardo Aleixo é mordaz, até o limite de uma rispidez que não poupa ninguém (nem o próprio poeta), Ricardo Lima é contemplativo, nos confins de uma melancolia que se compraz consigo mesma. Em ambos, temos como ponto de partida um negativismo que é causa e finalidade da escrita.
"Aos poetas, dados/ à rapina como são,/ apraz versar/ sobre tudo o que, morto/ ou vivo, existe, ao que parece,/ só para acabar em livro", escreve Aleixo em poema que fala da execução do terrorista norte-americano Timothy McVeigh e faz citações de Oswald de Andrade, Drummond e Mallarmé para dissecar a mórbida máquina do mundo: "Já nascemos meio mortos./ E continuamos a morrer".
"No retrato prata/ dos antepassados/ uma rua/ que não leva mais/ para casa", diz Lima em alguns dos tantos versos em que os traumas do presente (mortes, ausências, perdas) estão associados às cinzas de memórias familiares e reminiscências infantis.
Para ter idéia de como esses livros se inserem em suas trajetórias, porém, é preciso analisá-los separadamente. "Máquina Zero" é o quinto título de Aleixo e marca uma mudança em relação à sintaxe decupada e às experiências etnopoéticas dos livros anteriores.
Destes, ele conserva a economia formal e o sentido rítmico apurado, cuja mescla singular resultava numa espécie de melodia pós-concretista. A tônica de "Máquina Zero", contudo, é o escárnio e o maldizer.
Embora alguns poemas sugiram um vanguardismo surrado, que investe contra um suposto conservadorismo poético ("prefiro a paciente/ proeza das traças,/ meu rapaz,/ aos versinhos/ bem traçados/ dos quais/ te mostras capaz"), Aleixo consegue manter uma ironia que funciona de contraveneno para qualquer laivo de mau humor panfletário.
Os melhores exemplos disso são "Exercício de Lira Maldizente" (obra de um Gregório de Matos mineiro que satiriza as querelas entre poetas) e "Paupéria Revisitada": "Poesia é pão (para/ o espírito, se diz), mas atenção:/ o padeiro da esquina balofa/ vive do que faz; o mais/ fino poeta, não./ Poetas dão de graça/ o ar de sua graça/ (e ainda troçam/ -na companhia das traças-/ de tal "nobre condição')".
E se em "Dois Exercícios de Língua Pária" sobram alfinetadas para um poeta como Nelson Ascher (com quem, não obstante, ele partilha o gosto pelos períodos longos, cheios de orações subordinadas que serpenteiam em raciocínios intrincados), Aleixo não deixa de escarnecer de si mesmo, como prova a série "Teofagia", "Antropofagia" e "Autofagia".
Se "Máquina Zero" é uma metralhadora giratória que tudo "nadifica", "Cinza Ensolarada" é um livro feito de escombros de experiências, em que aquilo que é acolhedor se conjuga no pretérito e sobrevive apenas na memória. Assim como em seus dois livros anteriores, a poesia de Ricardo Lima tem altíssimo teor emocional, mas consegue miraculosamente escapar da pieguice, graças a um tipo específico de objetividade que percorre os versos desse livro composto por poemas sem título.
Essa objetividade se dá pela evocação de recortes do real ("tacos da casa soltos"; "folha na enxurrada") que irrompem como imagens fantasmáticas, recordação nostálgica de um mundo precário, anterior ao naufrágio da voz narrativa: "sonhos/ como cacos de vidro/ afundam desde a infância".
Além disso, a estrutura dos versos, com verbos no infinitivo ("tirar da alma/ pitangas/ e do pão/ silêncio") e ausência quase total de um "eu" poético, faz com que a poesia de Ricardo Lima tenha como efeito paradoxal um lirismo dessubjetivado, em que a realidade parece imantada pelo vazio.


Máquina Zero
   
Autor: Ricardo Aleixo
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 20 (64 págs.)

Cinza Ensolarada
   
Autor: Ricardo Lima
Editora: Azougue
Quanto: R$ 18 (72 págs.)



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