São Paulo, segunda-feira, 29 de maio de 2006

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GUILHERME WISNIK

Estuporador da ilusão


Canções de Chico Buarque acompanham um cenário movente de desagregação social na paisagem urbana

NÃO É de hoje que as canções de Chico Buarque traduzem com precisão o instante presente do Brasil, captado em sua essência nem sempre explícita. A lista desses emblemas de época atravessa décadas, passando por canções como "Sabiá" (1968), "O que Será" (1976), "Bye Bye Brasil" (1979), "Estação Derradeira" (1987) e "Sonhos Sonhos São" (1998). Mas também não é de hoje que as suas canções deixaram de estar coladas à circunstância política e à exaltação emotiva que as acompanhava em hinos como "Apesar de Você" (1970) e "Vai Passar" (1984). Sob as esperanças e frustrações da volta à normalidade democrática no país, desde o final dos anos 80 suas melodias se tornaram mais tortuosas, as harmonias mais complexas e a temática subliminar.
Vem de longe, portanto, o estranhamento formal das suas canções, que acompanham um cenário movente de desagregação social na paisagem urbana. De pesadelo a pesadelo, podemos ligar a cena de linchamento promovida por uma horda de "nego humilhado", "morto vivo", de 1980, à visão de uma "legião de famintos" que se engalfinha sob a varanda de alguém que atira pérolas, na canção de 98. Ou, também, ao cenário carioca em que contracenam, entre a graça e a desgraça, o baile funk, o reverendo lendo o Apocalipse e a prostituição infantil.
"Subúrbio", canção que abre o seu novo CD, é o ponto cego daquela cidade. Se, no disco anterior, a "cidade maravilhosa" é aquela que "quase arromba a retina de quem vê", ela agora é a paisagem que "não figura no mapa", "avesso da montanha" onde o Cristo "está de costas". Na melodia em lamento de choro-canção, e incorporando a saudação das rádios comunitárias ("Fala"), o cantor invoca os nomes dos bairros (Irajá, Acari...) num chamamento seco, que parece o avesso da compaixão idealizada de "Gente Humilde" (1970). "Carrega a tua cruz/ E os teus tambores", diz a letra, numa imagem de múltiplos sentidos, em que os tambores são tanto batuques quanto revólveres.
Na canção seguinte, Chico constrói um sonho impossível (utópico?), onde situações improváveis parecem normais: "De mão em mão o ladrão/ Relógios distribuía (...)/ Maconha só se comprava/ Na tabacaria". Ali, ao lado de imagens aparentemente singelas, surgem outras terríveis, como a de "guris inertes no chão" que "falavam de astronomia". Um "sonho" que fala da impossibilidade dos sonhos.
Na terceira canção, uma embolada hip-hop, o ciclo se completa. Trata-se de uma ode ao "rato de rua": "aborígene do lodo", "sobrevivente à chacina e à lei do cão". Desnecessário, aqui, insistir sobre a atualidade da canção. Chico toca no nervo da erosão atual dos valores éticos (do político ao humanitário), sob o embaralhamento social que imbricou traficantes, policiais, classe média etc. e gerou o horror indiscriminado ao "marginal". Na violência da melodia, a voz que canta se irmana ao ser que só se prolifera quando a cidade está podre: "Saqueador da metrópole/ Tenaz roedor de toda esperança/ Estuporador da ilusão/ Ó meu semelhante/ Filho de Deus, meu irmão".


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