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CONTARDO CALLIGARIS
Europa (ou Itália)
Os falsos apetrechos de luxo são o brioche (ruim) que Maria Antonieta propunha ao povo
ESTOU PASSANDO alguns dias de
férias na Itália. Domingo passado, de manhã, em Veneza,
sentei-me à mesa de um bar ao lado
da Ponte della Veneta Marina, na Riva dei Biasi. É um dos meus lugares
preferidos, pela vista, que vai de San
Giorgio até o campanário de San
Marco, com, no meio, a igreja della
Salute.
Infelizmente, ao lado do bar, há
uma sorveteria que coloca na calçada um imenso cone de sorvete de
gesso (1,70 m). Visto da minha mesinha, o falso cone erguia suas bolas
coloridas bem no meio, entre San
Giorgio e San Marco.
Dois barcos, insensatos e idênticos, atracaram, lado a lado, na Riva
dei Biasi. Deviam ser, originalmente, embarcações parecidas com os
"vaporettos" que Veneza usa para o
transporte público. Mas eles tinham
sido camuflados de maneira a se parecer com navios piratas assim como eles seriam construídos às pressas para o carro alegórico de uma escola de samba de segunda divisão.
Ambos levavam, em letras góticas, o
mesmo nome americano, "Jolly Roger". Os passageiros desceram, aparentemente felizes por ter dado sua
volta por Veneza num navio "de
época".
Agora minha visão incluía, entre
San Giorgio e San Marco, além do
cone de sorvete, dois navios piratas.
Ao ver uma fotografia desse panorama, qualquer amigo apostaria que
eu tinha passado minhas férias na
Disneylândia de Orlando.
Numerosos turistas paravam para
se imortalizar diante dos navios piratas. Talvez achassem a cena interessante por ela condensar um traço
do espírito pós-moderno: o pior fazer de conta é mais divertido do que
qualquer meditação sobre a herança
do passado. Ou, talvez, sem achar
nada, simplesmente eles participassem desse espírito.
Logo chegou um grupo de imigrantes africanos. Sentaram-se no
chão para se dedicar à tarefa de
preencher de papel jornal as bolsas
falsas de Gucci, Prada, Louis Vuitton, Hermes etc. que eles ofereceriam aos turistas. Do alto da última
ponte que os separava da maior concentração de turistas, um trio de
"carabinieri" os observava à distância. É um jogo que se repete em todas as cidades italianas: a polícia se
aproxima e os imigrantes vendedores se afastam, respeitosamente.
Todos sabem que é proibido (tanto imigrar sem documentos quanto
vender bolsas falsas), mas todos se
rendem ao inelutável: 1) a África
subsaariana, que não se sabe mais se
é um continente ou uma balsa à deriva, só pode exportar suas massas
de deserdados, 2) numa sociedade
que cultua os signos aparentes de
status, os falsos são o brioche (industrial e ruim) que Maria Antonieta queria oferecer ao povo que se
queixava da falta de pão.
Ao lado dos navios piratas, estava
atracado outro barco, vazio, o Moby
Dick 2. Seus passageiros chegaram:
eram pára-quedistas e veteranos da
divisão Folgore, que celebrava, naquele dia, sua festa anual. Os mais
jovens vestiam o uniforme, os mais
idosos, que não caberiam mais na
farda, só a boina vermelha.
A Folgore é um corpo de elite que
escreveu suas páginas de glória, como se diz, durante a Segunda Guerra
e ainda hoje combate no Afeganistão, além de cumprir missão de paz
no Líbano.
Um veterano, no seu segundo aperitivo da manhã, pediu licença para a
mulher que me acompanhava e cantarolou para nós uma música da divisão, que traduzo respeitando a rima: "E, se descermos num campo de
bicicletas, todas as mulheres nos darão suas....".
Perto da Riva dei Biasi, quase em
frente à minha casa de Veneza, há
um escritório da Anpi, a associação
nacional dos "partigiani" antifascistas italianos, quase sempre meio deserto. Os que tinham 20 anos em
1943 começam a minguar. Mas não
é só isso: nas últimas eleições, a chegada de um presidente da Câmara
que já foi do MSI (partido herdeiro
do fascismo italiano) manifestou
que o passado da luta antifascista
não é mais o divisor de águas da política italiana ou européia.
Nestes dias, é meu aniversário
-época de balanços. E o balanço
saiu assim: africanos vendedores de
falsos apetrechos do jet-set, Disneylândia de piratas e sorvete, soldados
procurando glória e "b...etas" em
causas incertas, com, no fundo, o esquecimento progressivo da história
que já deu algum sentido coletivo à
vida (desde os restos da grandeza
veneziana até o escritório hoje vazio
da Anpi).
Um americano, que estava sentado ao meu lado no bar, observou
meu ar estupefato e me disse, ao levantar-se: "Cheer up", alegre-se. Ele
tem razão.
ccalligari@uol.com.br
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