São Paulo, sábado, 29 de maio de 2010

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ANTONIO CICERO

Heidegger, Descartes e a razão


Heidegger assegura que Descartes representa "o início de uma mais ampla decadência da filosofia"


EM ARTIGO intitulado "Irracionalismo", publicado há duas semanas nesta coluna, observei que, paradoxalmente, uma das explicações para a enorme influência de Heidegger sobre tantos intelectuais franceses parece ser justamente o seu feroz anticartesianismo.
Além disso, relacionei o irracionalismo que identifico nesses intelectuais "pós-modernistas" com a relativização a que o autor de "Caminhos de floresta" tenta submeter o próprio conceito de razão.
Esta semana, o sr. Maurício Tuffani publicou na Folha um artigo intitulado "O tabu em torno da razão", em que, por um lado, afirma ser indevida minha atribuição a Heidegger de um feroz anticartesianismo e, por outro lado, pretende questionar minha crítica à tentativa heideggeriana de relativizar a razão.
Confesso que o artigo me surpreendeu. Supõe-se que alguém que se arvore em defensor de determinado autor tenha um grande interesse nele, de modo que, além de ter lido ao menos algumas de suas obras, conheça e admire o teor geral do seu pensamento.
Ora, as palavras do sr. Tuffani evidenciam que ele não leu nem conhece, ainda que indiretamente, a obra do autor que pretende socorrer. Não há outra explicação possível para sua declaração de que, em relação a Heidegger, "não faria sentido o rótulo "anticartesianismo", mesmo sem o adjetivo "feroz'"."
Digo isso porque um dos pontos em torno do qual há praticamente consenso entre os comentadores de Heidegger é exatamente quanto ao caráter anticartesiano da obra do "Mestre da Floresta Negra". É que Heidegger considera Descartes o fundador da metafísica moderna da subjetividade. Essa metafísica, segundo ele, leva às últimas consequências aquela que, iniciada na antiguidade, com Platão, identifica-se com o que o autor de "Ser e tempo" considera o "esquecimento do ser". Heidegger pensa, ademais, que toda a filosofia moderna, inclusive a de Nietzsche, é refém da interpretação cartesiana do ente e da verdade. Ora, o pensamento de Heidegger pretende lutar exatamente contra esse esquecimento, do qual supõe decorrer o niilismo moderno, "o sombreamento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do ser humano, a suspeita rancorosa contra tudo o que é criador e livre". É evidente, portanto, que tal pensamento não poderia deixar de se constituir fundamentalmente contra a interpretação cartesiana do ente e da verdade: ergo, contra Descartes.
Naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo. E embora, ao contrário do que o sr. Tuffani afirma, Heidegger nem sequer mencione Descartes no parágrafo 24 de "Ser e tempo", ele dedica os parágrafos 19, 20 e 21 do livro -e incontáveis parágrafos de outras obras- a atacar o filósofo francês.
Se isso não bastar para qualificar de "feroz" o anticartesianismo de Heidegger, lembro que ele, em "As questões fundamentais da filosofia", queixa-se da importância que é dada, nas universidades alemãs, ao estudo de Descartes, pois assegura que esse filósofo representa "o início de uma mais ampla decadência fundamental da filosofia".
No meu artigo, eu dera um exemplo da tentativa de Heidegger de relativizar o conceito de razão, tal como empregado pela tradição filosófica. Tentando rebater-me, o sr. Tuffani diz que "Heidegger problematiza as próprias noções de verdade e de razão. Ou seja, ele as recusa como absolutas". Ora, sr. Tuffani, o que é recusar uma coisa como absoluta senão relativizá-la?
Concluindo seu artigo, o sr. Tuffani, citando a tese de Nietzsche de que toda filosofia esconde intenções morais, afirma que as minhas, sejam quais forem, "parecem fazer do questionamento da razão um tabu".
Primeiro, confesso não entender como alguém que pense desse modo não tenha explicitado nem as intenções morais que o levaram a assim pensar, nem as que o levaram a afoitamente criticar meu artigo e tentar relativizar a razão e a verdade.
Segundo, observo que o questionamento da razão não é um tabu; contudo, como todo questionamento é feito pela própria razão, é evidente que esta, ao se questionar, não pode deixar de se afirmar.
Terceiro, chamo atenção para o fato de que defender a razão, assim como defender a liberdade de pensamento contra o dogma, já constitui indiscutível obrigação moral.



AMANHÃ NA ILUSTRADA: Ferreira Gullar


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