São Paulo, sexta, 29 de maio de 1998

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Tensão entre imagem e palavra move "O Apóstolo'

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Talvez o mais interessante de todos os pregadores que já apareceram no cinema seja o de "Night of the Hunter" (1955), único filme dirigido pelo ator Charles Laughton. Ali, Robert Mitchum era um misto de pastor e psicopata que trazia inscrita, em cada mão, as palavras "amor" e "ódio".
É verdade que o Sonny Dewey imaginado por Robert Duvall em seu "O Apóstolo" não é um demente assassino, mas alguém que transita entre o humano e o divino com desenvoltura mais evidente do que o comum dos mortais.
Tanto que, logo no início do filme, ao descobrir que sua mulher (Farrah Fawcett) o traía com outro pastor e tramava pelas suas costas tirá-lo da igreja que havia construído, acaba tendo um acesso de ódio muito humano e mata o rival com um taco de beisebol.
Logo depois, troca o Texas, sua base original, pela Louisiana, onde, num lugarejo chamado Bayou Boutte, trata de reiniciar sua vida de pregador, agora com o nome de Apóstolo E.F.
Ou seja, "O Apóstolo" está longe de ser um filme que procura denunciar a exploração da fé, como chegou a se dizer, mas, bem ao contrário, compreender a fé e seus caminhos não raro maltraçados.
Não é uma empreitada simples, porque a fé não é simples. E tanto não é que o poder dos pastores passa habitualmente pela fala.
Estamos, portanto, no território da pura linguagem. Não há nada que nos demonstre a existência de Deus, do Espírito Santo, da salvação etc., a não ser uma articulação de palavras, um discurso capaz de convencer, converter e "salvar".
Assim sendo, a realidade encolhe-se, inexiste, ou antes, sua existência deriva da linguagem, de um recorte particular que a linguagem efetua e que nos leva a compreender as coisas e a nos relacionar com o mundo de tal ou tal maneira.
Daí deriva boa parte do encanto de "O Apóstolo": da capacidade de trabalhar ao mesmo tempo fora e dentro da fé. Se Duvall nos mostra alguém que se julga semideus, um iluminado capaz de falar diretamente com Deus, ao mesmo tempo está mostrando um ser que não é mais do que um homem.
E.F. não é um vigarista. Mas também não é nenhum santo, embora fale como se fosse um. E por vezes parece ser mesmo, como na cena da conversão do sujeito que pretendia derrubar sua igreja com um trator -de longe o grande momento do filme.
"O Apóstolo" também não deixa de ser um filme sobre a dúvida, e nesse sentido ora impressiona por sua natureza antropológica -a capacidade de descrever um meio e um tipo de sentimento com isenção e conhecimento de causa científicos que nos levam a compreender um determinado tipo de fé-, ora pela capacidade de convocar no espectador todas as forças da desconfiança e da dúvida.
No final, essas duas direções em vez de se anularem parecem se somar para compor um filme impregnado de uma crença no próprio cinema.
Não aquela crença, antiga, segundo a qual o que vemos na tela seria verdadeiro por ser visível. Na medida em que trabalha a tensão entre a palavra e a imagem, Duvall nos conduz a um território em que bem e mal, falso e verdadeiro, real e ilusório, pecado e santidade convivem dramaticamente.
Uma convivência nada pacífica. Ela é feroz, contraditória, devastadora e, à medida que a ficção se desenvolve, nos damos conta de que propicia muito mais indagações do que respostas.
Se não encanta pela inventividade, ao menos ao primeiro olhar, "O Apóstolo" interessa pela integridade comovente e pela inteligência, para não falar da direção de atores, solidíssima.

Filme: O Apóstolo Produção: EUA, 1997 Direção: Robert Duvall Com: Robert Duvall, Farrah Fawcett, Billy Bob Thornton, Miranda Richardson Quando: a partir de hoje, nos cines Morumbi 5, Belas Artes e circuito


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