São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

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"A NARRATIVA DE ARTHUR GORDON PYM"

Obra traz mais uma das vítimas das maldades de Poe

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Tempestades, naufrágios, motins a bordo, ilhas desertas e ataques de selvagens, não necessariamente nesta ordem (nem em ordem nenhuma, aliás), fazem desta novela de Edgar Allan Poe (1809-1849) um daqueles típicos romances de aventura lidos pelos meninos de antigamente.
Entendo por "antigamente" qualquer época que aceite com naturalidade o vocabulário náutico de que este livro está repleto: brigues, bujarronas, traquetes de riz duplo, enfrechates a barlavento. Para mim, que nunca soube se há diferença entre "convés" e "tombadilho", essa terminologia sempre teve o encanto exótico, agreste e preciso que, para os narradores desses livros, ao contrário, aflora das ilhas tropicais.
Mais do que um romance de aventuras, entretanto, "A Narrativa de Arthur Gordon Pym" é um livro de Poe, e quem conhece seus contos "de terror, mistério e morte" reencontrará algumas velhas obsessões do autor.
O medo de ser enterrado vivo, por exemplo. O desafortunado Arthur Gordon Pym experimenta-o duas vezes nesta narrativa: quando embarca às escondidas no brigue Grampus -turbulências a bordo vedam a saída de seu esconderijo- e quando se aventura pelas gretas de um desfiladeiro, perto do vilarejo selvagem de Klock-Klock.
Histórias de cadáver que se reanima, de homem vivo que se disfarça de morto, de homem morto que se disfarça de vivo, descrições de canibalismo e putrefação -todo o lado macabro de Poe, enfim- convivem com seu lado cerebral e detetivesco -mensagens em código, propósitos ocultos dos personagens, planos impraticáveis- e, sobretudo, com trechos de análise quase "científica" de alguns estados psicológicos, como a amnésia, a alucinação e, claro, o pavor.
Para o leitor contemporâneo, no entanto, aquilo que talvez mais chame a atenção é o humor que subjaz a tantas descrições horripilantes. Como para fazer denúncia à invencionice do protagonista, que narra as aventuras em primeira pessoa, multiplicam-se a cada página os detalhes mais inverossímeis.
Culminam na descrição final de uma ilha onde vigora o horror à cor branca -mesmo os dentes dos nativos são negros- e onde a água, em vez de transparente, é veiada e furta-cor. O poético-paisagístico tem menos destaque, no texto de Poe, que o efeito de incredulidade que se quer provocar.

Dostoiévski e Baudelaire
Há outras edições de "A Narrativa de Arthur Gordon Pym" disponíveis em português -entre as quais cabe destacar a da L&PM, de bolso, na tradução de Arthur Nestrovski. O diferencial desta nova edição, da Cosac & Naify, está no prefácio e no posfácio, que levam respectivamente a assinatura de Fiódor Dostoiévski e de Charles Baudelaire.
O autor de "Crime e Castigo" destaca, num texto curto, a diferença entre o gênero fantástico, tal como praticado por E. T. A. Hoffman (1776-1822), e os caprichos da imaginação de Poe. Nada mais revelador do próprio Dostoiévski, além disso, do que esta sua observação sobre Poe: a de que ele põe o herói "na mais extraordinária situação externa ou psicológica" para relatar seu estado de alma com surpreendente exatidão. A frase é especialmente adequada para "A Narrativa de Arthur Gordon Pym".
Os comentários de Baudelaire são mais longos, entusiasmados e românticos. Defendem Poe das injúrias de seus contemporâneos, voltando-se contra o ambiente em que o poeta viveu.
"Os EUA foram para Poe", diz Baudelaire, "não mais do que uma vasta prisão (...), uma barbárie iluminada a gás". Acrescenta que "a vida interior, espiritual, de poeta, ou mesmo de bêbado" de Poe "foi apenas um esforço perpétuo para escapar à influência dessa atmosfera desagradável".
A revolta baudelairiana encontra na figura desregrada e profundamente intelectual de Poe um modelo e também um pretexto para formulações retóricas. Dizer "retóricas", no caso de Baudelaire, não é reclamar de um defeito. Os momentos de fraseologia mais teatral de seu texto sobre Poe são também aqueles em que reconhecemos o tom inconfundível das "Flores do Mal".
Cito um exemplo. Poe, diz Baudelaire, era um homem pequeno, com "pés e mãos de mulher". Tinha, entretanto, aptidão para os exercícios físicos.
Baudelaire faz então um comentário sobre homens que, "algumas vezes de aparência frágil, são talhados como atletas, bons para a orgia e para o trabalho". Nesse "bons para a orgia e para o trabalho" é como se o próprio demônio, ou pelo menos um demônio baudelairiano, tivesse tomado a palavra.
Aventureiro infeliz, impassível e ao mesmo tempo quase cômico -um pouco como se o livro de Jó fosse reescrito de forma folhetinesca e degradada-, Arthur Gordon Pym é mais uma dentre as muitas vítimas das maldades de Poe. E os textos de Baudelaire e Dostoiévski contribuem bastante para engrossar seu caldo.


A Narrativa de Arthur Gordon Pym
Narrative of Arthur Gordon Pym
    
Autor: Edgar Allan Poe
Tradutora: José Marcos Mariani de Macedo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 35 (314 págs.)




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