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"A NARRATIVA DE ARTHUR GORDON PYM"
Obra traz mais uma das vítimas das maldades de Poe
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Tempestades, naufrágios,
motins a bordo, ilhas desertas e ataques de selvagens, não necessariamente nesta ordem (nem
em ordem nenhuma, aliás), fazem desta novela de Edgar Allan
Poe (1809-1849) um daqueles típicos romances de aventura lidos
pelos meninos de antigamente.
Entendo por "antigamente"
qualquer época que aceite com
naturalidade o vocabulário náutico de que este livro está repleto:
brigues, bujarronas, traquetes de
riz duplo, enfrechates a barlavento. Para mim, que nunca soube se
há diferença entre "convés" e
"tombadilho", essa terminologia
sempre teve o encanto exótico,
agreste e preciso que, para os narradores desses livros, ao contrário, aflora das ilhas tropicais.
Mais do que um romance de
aventuras, entretanto, "A Narrativa de Arthur Gordon Pym" é um
livro de Poe, e quem conhece seus
contos "de terror, mistério e morte" reencontrará algumas velhas
obsessões do autor.
O medo de ser enterrado vivo,
por exemplo. O desafortunado
Arthur Gordon Pym experimenta-o duas vezes nesta narrativa:
quando embarca às escondidas
no brigue Grampus -turbulências a bordo vedam a saída de seu
esconderijo- e quando se aventura pelas gretas de um desfiladeiro, perto do vilarejo selvagem de
Klock-Klock.
Histórias de cadáver que se reanima, de homem vivo que se disfarça de morto, de homem morto
que se disfarça de vivo, descrições
de canibalismo e putrefação -todo o lado macabro de Poe, enfim- convivem com seu lado cerebral e detetivesco -mensagens
em código, propósitos ocultos
dos personagens, planos impraticáveis- e, sobretudo, com trechos de análise quase "científica"
de alguns estados psicológicos,
como a amnésia, a alucinação e,
claro, o pavor.
Para o leitor contemporâneo,
no entanto, aquilo que talvez mais
chame a atenção é o humor que
subjaz a tantas descrições horripilantes. Como para fazer denúncia
à invencionice do protagonista,
que narra as aventuras em primeira pessoa, multiplicam-se a
cada página os detalhes mais inverossímeis.
Culminam na descrição final de
uma ilha onde vigora o horror à
cor branca -mesmo os dentes
dos nativos são negros- e onde a
água, em vez de transparente, é
veiada e furta-cor. O poético-paisagístico tem menos destaque, no
texto de Poe, que o efeito de incredulidade que se quer provocar.
Dostoiévski e Baudelaire
Há outras edições de "A Narrativa de Arthur Gordon Pym" disponíveis em português -entre as
quais cabe destacar a da L&PM,
de bolso, na tradução de Arthur
Nestrovski. O diferencial desta
nova edição, da Cosac & Naify,
está no prefácio e no posfácio, que
levam respectivamente a assinatura de Fiódor Dostoiévski e de
Charles Baudelaire.
O autor de "Crime e Castigo"
destaca, num texto curto, a diferença entre o gênero fantástico,
tal como praticado por E. T. A.
Hoffman (1776-1822), e os caprichos da imaginação de Poe. Nada
mais revelador do próprio Dostoiévski, além disso, do que esta
sua observação sobre Poe: a de
que ele põe o herói "na mais extraordinária situação externa ou
psicológica" para relatar seu estado de alma com surpreendente
exatidão. A frase é especialmente
adequada para "A Narrativa de
Arthur Gordon Pym".
Os comentários de Baudelaire
são mais longos, entusiasmados e
românticos. Defendem Poe das
injúrias de seus contemporâneos,
voltando-se contra o ambiente
em que o poeta viveu.
"Os EUA foram para Poe", diz
Baudelaire, "não mais do que
uma vasta prisão (...), uma barbárie iluminada a gás". Acrescenta
que "a vida interior, espiritual, de
poeta, ou mesmo de bêbado" de
Poe "foi apenas um esforço perpétuo para escapar à influência
dessa atmosfera desagradável".
A revolta baudelairiana encontra na figura desregrada e profundamente intelectual de Poe um
modelo e também um pretexto
para formulações retóricas. Dizer
"retóricas", no caso de Baudelaire, não é reclamar de um defeito.
Os momentos de fraseologia mais
teatral de seu texto sobre Poe são
também aqueles em que reconhecemos o tom inconfundível das
"Flores do Mal".
Cito um exemplo. Poe, diz Baudelaire, era um homem pequeno,
com "pés e mãos de mulher". Tinha, entretanto, aptidão para os
exercícios físicos.
Baudelaire faz então um comentário sobre homens que, "algumas vezes de aparência frágil,
são talhados como atletas, bons
para a orgia e para o trabalho".
Nesse "bons para a orgia e para o
trabalho" é como se o próprio demônio, ou pelo menos um demônio baudelairiano, tivesse tomado
a palavra.
Aventureiro infeliz, impassível e
ao mesmo tempo quase cômico
-um pouco como se o livro de Jó
fosse reescrito de forma folhetinesca e degradada-, Arthur
Gordon Pym é mais uma dentre
as muitas vítimas das maldades
de Poe. E os textos de Baudelaire e
Dostoiévski contribuem bastante
para engrossar seu caldo.
A Narrativa de Arthur Gordon
Pym
Narrative of Arthur Gordon Pym
Autor: Edgar Allan Poe
Tradutora: José Marcos Mariani de
Macedo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 35 (314 págs.)
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