São Paulo, quinta-feira, 29 de junho de 2006

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COMIDA

A riqueza do cerrado

Pirenópolis, em Goiás, preserva tradições gastronômicas há quase 300 anos

RACHEL BOTELHO
ENVIADA ESPECIAL A PIRENÓPOLIS

Fundada por bandeirantes no século 18, a cidade goiana de Pirenópolis permaneceu praticamente isolada até meados da década de 1960, quando Brasília começou a ser ocupada. Graças a esse histórico peculiar, os visitantes que estiveram no 3º Festival Gastronômico e Cultural de Pirenópolis, realizado entre os dias 22 e 25 de junho, puderam voltar quase três séculos no tempo para experimentar os sabores da culinária tradicional do cerrado. Forjada a partir do encontro entre índios que habitavam a região com tropeiros e escravos que se embrenharam no desconhecido Centro-Oeste brasileiro em busca de ouro, a cozinha local utiliza ingredientes que remetem a um passado de escassez, quando a vegetação nativa era a maior fonte de subsistência. "Faltava comida porque os exploradores vieram a Goiás garimpar, não plantar. Além disso, o solo era pedregoso onde havia ouro", afirma Telma Lopes Machado, proprietária da fazenda Babilônia, um antigo engenho de cana-de-açúcar nos arredores da cidade. O maior legado dos índios foi a mandioca, utilizada na forma de farinha e em receitas como o mané pelado (bolo) e o pau-a-pique (uma variação do beiju). O porco na lata, como é chamada a carne conservada na gordura do próprio animal, integrava a matula carregada pelos bandeirantes em suas longas viagens, na qual a paçoca de carne-seca também era item indispensável. O milho, presente em inúmeras receitas, é em grande parte um legado dos africanos, que já o utilizavam para fazer fubá.

Pequi e guariroba
Embora guarde semelhanças com a culinária mineira, com a qual compartilha pratos como a costelinha de porco e o feijão tropeiro, a cozinha pirenopolina emprega também frutas típicas do cerrado, como pequi, cagaita e cajuzinho, e ingredientes de amargor notável, como a guariroba (espécie de palmito) e a jurubeba (fruto semelhante à ervilha). Para os chefs de São Paulo Mara Salles (Tordesilhas) e Eduardo Duó (Vira-Lata), que prepararam um dos jantares do festival, o cerrado produz alimentos de sabor muito intenso. "É tudo muito seco, então a força necessária para gerar esses frutos deve acabar concentrando os aromas, os sabores. O que é amargo é muito amargo, o doce é muito doce", afirma Mara Salles. Diferentemente do que ocorria no passado, quando os habitantes de Pirenópolis recorriam a frutos que serviam de alimento ao gado e aos animais silvestres por falta de opção, chefs convidados de outros Estados vêem na pouco explorada culinária local uma enorme riqueza. Beto Pimentel, do restaurante Paraíso Tropical, de Salvador (BA), se encantou com a castanha de baru, a grande vedete da cozinha do cerrado.

Castanha do cerrado
Rica em proteínas, cálcio e ferro, a castanha vem sendo estudada pela Embrapa Cerrados desde a década de 1980. Nos últimos anos, a despeito das dificuldades inerentes à colheita extrativista, pequenas empresas de Goiás passaram a investir em produtos à base dessa noz de formato elíptico. Manuel Aponte, proprietário do Trem do Cerrado, que fabrica artesanalmente biscoitos e barras de cereais com a castanha, vê no alimento mais que uma fonte de renda. "A fronteira agrícola pára onde os produtos do cerrado são utilizados. É uma maneira de preservá-lo", acredita.


A jornalista RACHEL BOTELHO viajou a convite da organização do 3º Festival Gastronômico e Cultural de Pirenópolis


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