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CARLOS HEITOR CONY
Godard: o que Resnais pensa de mim?
Se todos fizessem o mesmo cinema de Tati, eu não precisaria fazer certos filmes, diz Godard
HAVANA, JANEIRO de 1968
-Quase meio-dia, a piscina
está vazia de gente. Surge
um homem, magro, de tanga, dá um
mergulho e fica exibindo braçadas
curtas e cansadas.
Logo depois, a mulher alta, tão
magra como o homem, num biquíni
sumário, deita-se na beirada e fica
olhando o sol de Havana.
Tenho vontade de perguntar ao
homem se a água está fria, mas ele
pode me responder em russo ou em
servo-croata, o melhor é ficar calado, num país socialista a prudência
aconselha o racionamento de gêneros de primeira necessidade e de
perguntas sem necessidade.
Resolvo testar eu próprio a água e
mergulho, sem muito brilho, mas
com a suficiente habilidade para não
esbarrar no solitário nadador que
continua com suas braçadas curtas e
cansadas. Mesmo assim, há a colisão, sem mortos nem feridos.
O homem murmura um "Pardon"
gorgulhante -e bebe um pouco de
água por causa da gentileza. Desculpo em silêncio, com um gesto da cabeça -a piscina tem um gosto de
cloro e de palmeiras.
O incidente perturba a paz do cidadão. Retira-se cabisbaixo, o corpo
pingando, enxuga a cara na toalha e
coloca uns óculos defumados. O rosto me parece conhecido. Retiro-me
também e fico observando o casal: a
mulher é mesmo muito magra para
o meu gosto e -segundo parece-
para o gosto do próprio companheiro, que passa por ela como se fosse
um estranho.
Encaro o homem: um rosto de
menino malcriado, desses que ficam
sempre de castigo. O sol do Caribe
havia avermelhado um início de calva, mas assim mesmo reconheço o
camarada. É Jean-Luc Godard.
Sabia que ele estava hospedado no
mesmo Habana Libre, sucessor socialista do capitalista Havana
Hilton. E lá ficamos ao sol, lado a lado, num silêncio conveniente a duas
pessoas de poucas palavras.
Até que surge o indefectível conhecido comum que faz as apresentações. O romancista Jorge Semprun, meu colega no júri do Prêmio
Casa de las Américas, marca um jantar com Godard para a mesma noite.
Sou apresentado como brasileiro
-e Godard olha para mim como se
eu fosse um marciano. Mais tarde,
pouco falaríamos do Brasil, mas
muito de Godard. Pergunta-me se
conhecia o seu último filme, "Week-End". Respondo que sim.
- Viu no Brasil?
- Não, em Paris, antes de vir para
Havana. O cinema tinha umas 28
pessoas na platéia.
Parece não se incomodar nem
com a informação nem com a indelicadeza. Jorge Semprun, amigo e roteirista de Alain Resnais, sofre dele
pesado interrogatório: Resnais gosta dos meus filmes? Ele acha que sou
um idiota? Ele vai continuar a fazer
os mesmos filmes?
Semprun responde o que pode.
Resnais via "com muita admiração a
estranha e fascinante aventura de
Godard no cinema".
A resposta parece que agradou ao
cineasta. Há um silêncio mais ou
menos longo e, imprevistamente,
ele pergunta se eu tinha visto
"Playtime", de Jacques Tati, que havia estreado em Paris, quase ao mesmo tempo que "Week-End", do próprio Godard.
- Vi. Achei, inclusive, que algumas
coisas de Tati estão no seu novo filme. A extensa fileira de carros amassados, os cadáveres ensangüentados, aquele trator que esbarra num
piano de cauda...
Godard pensa um pouco e admite:
- Se todos fizessem o mesmo cinema de Tati, eu não precisaria fazer
certos filmes.
Acho a resposta inteligente e concordo com ela. Mas logo alguns rapazes chegam para apanhar Godard.
Vão exibir "Acossado", e o autor faria a apresentação do filme. Ele pergunta se não queremos ir.
A conferência é fria -e a exibição
do filme mais fria ainda. Os cubanos
não gostaram de certas posições do
cineasta, principalmente não gostaram de "Pierrot Le Fou", que chegou
a ser interditado pela censura de Fidel Castro.
Por conta daquele filme, aplaudo-o de pé, e Semprun me acompanha
na modesta ovação. Godard agradece e nos empurra para fora da sala,
de volta ao hotel.
Dias depois, a despedida final. Ao
contrário de Semprun, que abraça a
gente e diz com forte sotaque espanhol um cálido "buena suerte",
Godard acena para nós, num gesto
ambíguo que tanto pode ser um "Au
revoir", um "A bientôt", um "Vá para
o diabo que o carregue". Respondo
com o mesmo gesto, dando ênfase
ao último significado.
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