São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2011 |
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MARCELO COELHO Mexendo com o passado
SAIU FINALMENTE no Brasil um documentário em DVD, feito há mais de 40 anos, sobre a colaboração dos franceses com o nazismo. Chama-se "A Tristeza e a Piedade" ("Le Chagrin et la Piété"; Videofilmes), tem mais de quatro horas e foi filmado por Marcel Ophüls em 1969. A história desse filme já daria, ela própria, um documentário. Feito para ser transmitido pela televisão, "A Tristeza e a Piedade" teve de se acomodar a uma pequena circulação nos cinemas, e com sua transmissão pelas TVs alemã e suíça, porque as autoridades francesas viram uma série de problemas em sua exibição. "A Tristeza e a Piedade" remexia uma série de traições, cumplicidades, calhordices e heroísmos envolvendo a memória e a autoimagem dos franceses. A França, como se sabe, foi derrotada vergonhosamente pelos nazistas em 1940. Reconhecendo a derrota, um velho herói da Primeira Guerra Mundial, o marechal Philippe Pétain, dispôs-se a fazer um armistício com Adolf Hitler, e comandou um regime fantoche até o final da guerra. Do outro lado, sem reconhecer a derrota, Charles de Gaulle refugiou-se em Londres, lançando pelo rádio conclamações à resistência. Dizia ele que era preciso, por três razões, continuar lutando contra Hitler. Primeiro, a honra: a França não poderia abandonar seus aliados (na época, só a Inglaterra, a Holanda e menos de meia dúzia de países pequenos) na guerra contra a Alemanha. Segundo, o bom senso: nenhuma guerra está perdida quando toda a Marinha de um país e seu vasto império colonial ainda não foram atingidos. Terceiro, o interesse nacional: a guerra contra Hitler envolveria num futuro próximo os Estados Unidos e a União Soviética. Seria péssimo para as aspirações da França como potência mundial abandonar o jogo antes dessa segunda rodada. Entre o "bom senso" de Pétain (perdemos a guerra, é melhor nos acomodarmos aos fatos) e o "bom senso" de De Gaulle (é loucura entregar tudo a Hitler, quando a guerra ainda mal começou), os franceses se dividiram. O filme de Marcel Ophüls mostra, sem desrespeito para nenhum dos lados, o que estava em jogo. Há entrevistas com pessoas bem simples, que logo viram o absurdo de colaborar com os alemães. Dois irmãos agricultores, com total bonomia popular, contam sua óbvia opção pela guerrilha. Há entrevistas com ex-oficiais alemães, que embora lamentando o fanatismo nazista, continuavam achando que os franceses eram desorganizados, sujos, desprezíveis -e que só a Alemanha os salvaria. Ophüls trata com honestidade e lisura todos os seus entrevistados. Um ricaço francês, que no final da guerra resolveu envergar o uniforme da SS nazista (ao lado de outros 8.000 compatriotas seus) encontra tempo para justificar, sem má-fé, seus erros de juventude. Ressalta, nessas entrevistas, a figura de Pierre Mendès-France, político judeu que o regime de Pétain quis condenar por deserção. Na verdade, Mendès-France estava fugindo do país para se aliar à resistência. O governo francês, traidor da França até os cabelos, chamava de traidores os que se engajavam contra Hitler. Chama a atenção, no DVD, a hábil desimportância que Mendès-France atribui a tudo isso. Fala como vitorioso, e perdoa, com algum desprezo, os derrotados. De Gaulle entregou-se a um esforço de conciliação no pós-Guerra. Disse que a resistência a Hitler foi "a espada", enquanto os colaboradores de Pétain "foram o escudo" durante a invasão alemã. O fato é que "o escudo" mandava judeus para Auschwitz, e matava sob tortura os heróis da resistência, enquanto "a espada" tratava de lutar contra isso. Pouco importavam tais fatos, numa situação em que o conflito com o comunismo levou De Gaulle a sucessivas alianças com a direita. Não foi fácil para Marcel Ophüls, tantos anos depois, mexer naquela ferida. Colocou novamente na pauta uma divisão política terrível: "De que lado você estava em 1942?". Ao passo que, na prática, todos os esforços de união nacional no pós-Guerra cuidavam de tornar desimportante essa questão. Em escala menor, a história da ditadura brasileira -com seus Sarneys, Collors, Lobões e Malufs- tem sido esquecida também, a favor de conveniências políticas imediatas, e de uma notável ausência de rancor. Ausência de honra, diríamos no vocabulário de De Gaulle. Marcel Ophüls entrevistando Dilma Rousseff: eis um belo documentário que jamais será feito. Talvez ela saiba o que não está fazendo. coelhofsp@uol.com.br AMANHÃ NA ILUSTRADA: Contardo Calligaris Texto Anterior: Dez filmes ganham verba para serem lançados no exterior Próximo Texto: Artes plásticas: MIS anuncia programação e nova direção Índice | Comunicar Erros |
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