|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MANUEL DA COSTA PINTO
A gordura da morte
Erri de Luca conserva uma percepção da história como trauma e da literatura como fluxo ditado por fantasmas
"ENTRA-SE EM uma guerra
também por vergonha de
ficar de fora. E daí um luto te pega e te faz continuar soldado
só de raiva." A frase do protagonista
de "Três Cavalos", do italiano Erri
de Luca, caberia na boca de qualquer
personagem do neo-realismo ou dos
romances engajados do Pós-Guerra.
Ocorre que a frase se refere não
aos "partigiani", à resistência ao fascismo, mas a um evento mais próximo no tempo e (para nós) no espaço:
a "guerra suja" empreendida pelo
regime militar argentino entre 1976
e 1982.
A ficção do autor napolitano corresponde a uma modalidade de escrita e a um modo de expressar a história que, de certo modo, já estavam
presentes no neo-realismo. Pois, ao
lado da prosa militante de Ignazio
Silone, Carlo Levi ou Vasco Pratolini, também houve escritores que derivaram da mímese dos acontecimentos uma complexa discussão sobre os impasses da representação
-como o Beppe Fenoglio de "O Partigiano Johnny" (épico expressionista da Resistência) ou o Elio Vittorini de "Conversa na Sicília" (alegoria do colapso econômico).
De Luca pertence a outro momento, mas conserva desse último recorte uma percepção da história como
trauma, da memória como impossibilidade do luto e da literatura como
fluxo verbal ditado por lapsos e fantasmas.
O protagonista de "Três Cavalos"
morou na Argentina, levado por
uma mulher que seria assassinada
pelos aparelhos repressivos; ativista
político, refugia-se nas ilhas Malvinas, de onde escapa durante a guerra
contra a Inglaterra.
De volta à Itália, vive como jardineiro, freqüenta uma trattoria e se
envolve com uma prostituta que,
ameaçada, o leva ao reencontro com
seu passado assassino -do qual participa um imigrante africano que
compartilha seu "ethos" mediterrâneo, marcado pela nostalgia das coisas elementares e pela contemplação da natureza.
Esse enredo, todavia, é apenas a
moldura de uma narrativa circunscrita ao tempo presente, aos fragmentos do discurso amoroso, à obsessão pela "geometria das coisas ao
redor" e aos utensílios de uma vida
reduzida às razões do corpo.
Numa rara reflexão sobre sua recusa de buscar causalidades, o protagonista diz: "Renuncio, porque
com tanta perda de vidas os porquês
soam como justificação, alojam atenuantes". Aquilo que foi recalcado,
porém, retorna na forma daquelas
reincidências que denominamos
destino: "Dá nojo matar. Você não se
livra mais da gordura da morte".
Não seria excessivo terminar com
um elogio à Berlendis & Vertecchia,
que com este romance chega ao 30º
volume da coleção Letras Italianas
(marca assinalada por novo projeto
gráfico). Voltada para autores do século 20, a série inclui clássicos modernos como Pirandello e Lampedusa mas também um ousado panorama da produção contemporânea,
que seria desejável termos em relação a outras tradições literárias.
TRÊS CAVALOS
Autor: Erri de Luca
Tradução: Renata Lúcia Bottini
Editora: Berlendis & Vertecchia
Quanto: R$ 29,90 (112 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Moacir Santos chega premiado aos 80 Índice
|