São Paulo, sábado, 29 de julho de 2006

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MANUEL DA COSTA PINTO

A gordura da morte

Erri de Luca conserva uma percepção da história como trauma e da literatura como fluxo ditado por fantasmas

"ENTRA-SE EM uma guerra também por vergonha de ficar de fora. E daí um luto te pega e te faz continuar soldado só de raiva." A frase do protagonista de "Três Cavalos", do italiano Erri de Luca, caberia na boca de qualquer personagem do neo-realismo ou dos romances engajados do Pós-Guerra.
Ocorre que a frase se refere não aos "partigiani", à resistência ao fascismo, mas a um evento mais próximo no tempo e (para nós) no espaço: a "guerra suja" empreendida pelo regime militar argentino entre 1976 e 1982.
A ficção do autor napolitano corresponde a uma modalidade de escrita e a um modo de expressar a história que, de certo modo, já estavam presentes no neo-realismo. Pois, ao lado da prosa militante de Ignazio Silone, Carlo Levi ou Vasco Pratolini, também houve escritores que derivaram da mímese dos acontecimentos uma complexa discussão sobre os impasses da representação -como o Beppe Fenoglio de "O Partigiano Johnny" (épico expressionista da Resistência) ou o Elio Vittorini de "Conversa na Sicília" (alegoria do colapso econômico).
De Luca pertence a outro momento, mas conserva desse último recorte uma percepção da história como trauma, da memória como impossibilidade do luto e da literatura como fluxo verbal ditado por lapsos e fantasmas. O protagonista de "Três Cavalos" morou na Argentina, levado por uma mulher que seria assassinada pelos aparelhos repressivos; ativista político, refugia-se nas ilhas Malvinas, de onde escapa durante a guerra contra a Inglaterra.
De volta à Itália, vive como jardineiro, freqüenta uma trattoria e se envolve com uma prostituta que, ameaçada, o leva ao reencontro com seu passado assassino -do qual participa um imigrante africano que compartilha seu "ethos" mediterrâneo, marcado pela nostalgia das coisas elementares e pela contemplação da natureza.
Esse enredo, todavia, é apenas a moldura de uma narrativa circunscrita ao tempo presente, aos fragmentos do discurso amoroso, à obsessão pela "geometria das coisas ao redor" e aos utensílios de uma vida reduzida às razões do corpo.
Numa rara reflexão sobre sua recusa de buscar causalidades, o protagonista diz: "Renuncio, porque com tanta perda de vidas os porquês soam como justificação, alojam atenuantes". Aquilo que foi recalcado, porém, retorna na forma daquelas reincidências que denominamos destino: "Dá nojo matar. Você não se livra mais da gordura da morte".
Não seria excessivo terminar com um elogio à Berlendis & Vertecchia, que com este romance chega ao 30º volume da coleção Letras Italianas (marca assinalada por novo projeto gráfico). Voltada para autores do século 20, a série inclui clássicos modernos como Pirandello e Lampedusa mas também um ousado panorama da produção contemporânea, que seria desejável termos em relação a outras tradições literárias.


TRÊS CAVALOS
    Autor: Erri de Luca Tradução: Renata Lúcia Bottini
Editora: Berlendis & Vertecchia
Quanto: R$ 29,90 (112 págs.)



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