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FERNANDO GABEIRA
Bom inverno para se desesperar
Perguntamo-nos como foi possível passar uma década convivendo com nichos de corrupção
AS MANHÃS do Rio estão lindas,
e as folhas amarelas das
amendoeiras ganham um
tom vermelho, sob as lentes escuras... Mas os dias e as noites estão
sendo terríveis neste pedaço do inverno brasileiro.
No subterrâneo do Congresso,
trancados num imenso cofre, examinamos todos os detalhes desse escândalo das ambulâncias superfaturadas. Na superfície, as bombas
caem sobre Beirute, os foguetes sobre Haifa. Sob as luzes frias de uma
arquitetura que parece um abrigo
antiaéreo, perguntamo-nos a cada
instante o que viemos fazer aqui, como foi possível passar uma década
convivendo com pequenos nichos
de corrupção, alheios à metástase
que comprometeria todo o corpo.
Na superfície, o Líbano destruído,
as faces marcadas de estilhaço como
se tomadas por uma sangrenta varíola. E as perguntas no ar: a situação
no Oriente Médio é mesmo insolúvel? A humanidade é capaz de criar
problemas que não pode resolver?
Nos subterrâneos, checamos nomes e fotos para assegurar quem é
quem; muitos eram desconhecidos.
Mas, quando a foto aparece no alto
da tela, constatamos que não são para nós o que representam para os expectadores: apenas caras dispostas
num álbum. São lembranças fragmentárias, um vizinho de corredor,
uma face no bar, inúmeros flashes.
Eles nos deixaram fazer discursos,
salvar o mundo, aprovar o protocolo
de Kyoto, enquanto silenciosamente...
Na superfície, o drama dos que
querem deixar o Líbano, percorrendo estradas perigosas, usando táxis,
ônibus, sentindo náuseas nos ferry-boats que saem de Beirute. O que dizer para os amigos, pergunta Robert
Fisk. Se ficarem, podem morrer
num bombardeio. Se saírem, podem
ser alcançados por uma bomba na
estrada.
Nos subterrâneos, a luta contra
um absurdo sigilo. Homens públicos
no contato com o Orçamento não carecem de sigilo. A transparência é
um objetivo. Mas não se realiza cristalinamente. Alguns conseguem;
outros, não. No entanto, isso deveria
estar na internet, à disposição. Não
significa a morte da concorrência.
Pelo contrário, ela implicará novas pesquisas, nexos, trabalho para
retirar da massa de informações comuns, um novo conhecimento.
Na superfície, os primeiros passos
para vencer o trauma da guerra.
Contatos, manifestos, uma conta
para ajudar o Líbano, um acordo entre árabes e judeus brasileiros por
um esforço conjunto de paz, baseado na nossa própria convivência pacífica. Isto passa, é claro, por um domínio do Exército do Líbano no sul
do país, por um cessar-fogo.
Há subterrâneos em Haifa e em
outros pontos do norte de Israel. O
Hizbollah sabia que soldados israelenses são considerados cidadãos
por quem é preciso cuidar, ainda que
seja para receber seus ossos de volta.
Não foi um inocente seqüestro. Mas
as conseqüências se voltam contra
um país reconstruído, um turismo
em expansão, praias, um pequeno
oásis cosmopolita.
Os subterrâneos aqui são dissecados na luz fria de um morgue. Há dezenas de mortos e feridos e apenas
uma tênue esperança de melhora
com as novas eleições.
De novo, a questão da superfície se
encontra com a do subterrâneo: o
Oriente Médio é um problema insolúvel, a decadência do Parlamento
brasileiro é irreversível até a mais
completa putrefação? Se acrescentamos a elas a dúvida sobre a sobrevivência do próprio planeta, são trilhas estreitas, ambíguas, talvez inexistentes. Não podemos seguir. No
entanto, seguimos, como na frase de
Beckett.
Na superfície, abriremos uma
conta S.O.S. Libano, tentaremos articular um esforço brasileiro na reconstrução do país. Era impossível
num Iraque retalhado em concessões pelos norte-americanos. Mas é
possível num Líbano.
Nos subterrâneos, continuaremos
pesquisando, apesar de nossas retinas fatigadas. Quando Sartre escreveu "As Mãos Sujas", se referia aos
necesários compromissos para
avancar uma idéia política. Uma outra versão dessa história da ética da
responsabilidade para poder governar.
Quase 40 anos depois, não esperava retomar os argumentos de Sartre
numa situação bem mais prosaica.
Enterrar as mãos num processo elementar de corrupção, na esperança
de sair deles e sujar as mãos, com alguma nobreza nos compromissos
mais amplos sobre o futuro do país.
Na superfície, explode um pedaço
do Oriente Médio; nos subterrâneos, implodem as vísceras políticas
de um Congresso suicida. E o inverno continua no Rio, impiedosamente bonito.
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