São Paulo, sábado, 29 de julho de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Bom inverno para se desesperar

Perguntamo-nos como foi possível passar uma década convivendo com nichos de corrupção

AS MANHÃS do Rio estão lindas, e as folhas amarelas das amendoeiras ganham um tom vermelho, sob as lentes escuras... Mas os dias e as noites estão sendo terríveis neste pedaço do inverno brasileiro.
No subterrâneo do Congresso, trancados num imenso cofre, examinamos todos os detalhes desse escândalo das ambulâncias superfaturadas. Na superfície, as bombas caem sobre Beirute, os foguetes sobre Haifa. Sob as luzes frias de uma arquitetura que parece um abrigo antiaéreo, perguntamo-nos a cada instante o que viemos fazer aqui, como foi possível passar uma década convivendo com pequenos nichos de corrupção, alheios à metástase que comprometeria todo o corpo.
Na superfície, o Líbano destruído, as faces marcadas de estilhaço como se tomadas por uma sangrenta varíola. E as perguntas no ar: a situação no Oriente Médio é mesmo insolúvel? A humanidade é capaz de criar problemas que não pode resolver?
Nos subterrâneos, checamos nomes e fotos para assegurar quem é quem; muitos eram desconhecidos. Mas, quando a foto aparece no alto da tela, constatamos que não são para nós o que representam para os expectadores: apenas caras dispostas num álbum. São lembranças fragmentárias, um vizinho de corredor, uma face no bar, inúmeros flashes. Eles nos deixaram fazer discursos, salvar o mundo, aprovar o protocolo de Kyoto, enquanto silenciosamente...
Na superfície, o drama dos que querem deixar o Líbano, percorrendo estradas perigosas, usando táxis, ônibus, sentindo náuseas nos ferry-boats que saem de Beirute. O que dizer para os amigos, pergunta Robert Fisk. Se ficarem, podem morrer num bombardeio. Se saírem, podem ser alcançados por uma bomba na estrada.
Nos subterrâneos, a luta contra um absurdo sigilo. Homens públicos no contato com o Orçamento não carecem de sigilo. A transparência é um objetivo. Mas não se realiza cristalinamente. Alguns conseguem; outros, não. No entanto, isso deveria estar na internet, à disposição. Não significa a morte da concorrência. Pelo contrário, ela implicará novas pesquisas, nexos, trabalho para retirar da massa de informações comuns, um novo conhecimento.
Na superfície, os primeiros passos para vencer o trauma da guerra. Contatos, manifestos, uma conta para ajudar o Líbano, um acordo entre árabes e judeus brasileiros por um esforço conjunto de paz, baseado na nossa própria convivência pacífica. Isto passa, é claro, por um domínio do Exército do Líbano no sul do país, por um cessar-fogo.
Há subterrâneos em Haifa e em outros pontos do norte de Israel. O Hizbollah sabia que soldados israelenses são considerados cidadãos por quem é preciso cuidar, ainda que seja para receber seus ossos de volta. Não foi um inocente seqüestro. Mas as conseqüências se voltam contra um país reconstruído, um turismo em expansão, praias, um pequeno oásis cosmopolita.
Os subterrâneos aqui são dissecados na luz fria de um morgue. Há dezenas de mortos e feridos e apenas uma tênue esperança de melhora com as novas eleições.
De novo, a questão da superfície se encontra com a do subterrâneo: o Oriente Médio é um problema insolúvel, a decadência do Parlamento brasileiro é irreversível até a mais completa putrefação? Se acrescentamos a elas a dúvida sobre a sobrevivência do próprio planeta, são trilhas estreitas, ambíguas, talvez inexistentes. Não podemos seguir. No entanto, seguimos, como na frase de Beckett.
Na superfície, abriremos uma conta S.O.S. Libano, tentaremos articular um esforço brasileiro na reconstrução do país. Era impossível num Iraque retalhado em concessões pelos norte-americanos. Mas é possível num Líbano.
Nos subterrâneos, continuaremos pesquisando, apesar de nossas retinas fatigadas. Quando Sartre escreveu "As Mãos Sujas", se referia aos necesários compromissos para avancar uma idéia política. Uma outra versão dessa história da ética da responsabilidade para poder governar.
Quase 40 anos depois, não esperava retomar os argumentos de Sartre numa situação bem mais prosaica. Enterrar as mãos num processo elementar de corrupção, na esperança de sair deles e sujar as mãos, com alguma nobreza nos compromissos mais amplos sobre o futuro do país.
Na superfície, explode um pedaço do Oriente Médio; nos subterrâneos, implodem as vísceras políticas de um Congresso suicida. E o inverno continua no Rio, impiedosamente bonito.


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