São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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Choque de civilizações

Lançamento de série da Cultura sobre o Xingu em aldeia kuikuro dá margem a visões distintas sobre relações entre índios e brancos

Numa mesma noite no Xingu, projeções mostram filmes de coletivo indígena e capítulo de documentário de Washington Novaes

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Cinegrafista indígena durante trabalho de registro de cantos dos kuikuro, no Xingu


RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL AO XINGU (MT)

Enquanto o pequeno monomotor, com seu carregamento de repórteres, máquinas, câmeras e gravadores, faz a última curva de aproximação para aterrar na pista de pouso da aldeia Ipatse, os cerca de 300 índios kuikuro que ali vivem se preparam para mais uma série de cantos e danças, pintados e vestidos a caráter.
O aparelho pousa macio na pista de terra avermelhada que é um braço ligado à aldeia para darmos início ao que será uma espécie de conflito -de perspectivas, ao menos-, o tempo todo fantasiado de festa.
O avião levantou um bocado de poeira, que envolve os repórteres e suas tralhas ao pularem dos aparelhos. Outro tanto sobe do bater de pés na dança dos homens, que começa no centro do amplo espaço circular rodeado por grandes casas kuikuro. É só atrás delas que aparecem as árvores, que se estenderão em mata espessa por toda a volta, bem preservada somente no interior da Terra Indígena do Xingu.
As crianças são as primeiras a vir receber os brancos; são as que mais se aproximam do monomotor. Mais atrás, outros, jovens, o corpo adornado com pigmento escuro e enfeites amarelos e vermelhos, nos saúdam. Um deles segura uma câmera digital. Enquanto o repórter e Mutuá Kuikuro, 26, caminharem e conversarem até a aldeia -o índio empurrando sua bicicleta vermelha-, o cinegrafista kuikuro não desviará a câmera um segundo sequer do corpo dos brancos.
Fotógrafos e cinegrafistas brancos de um lado, cinegrafistas e outros kuikuro munidos até de celular com fotos do outro, parece o encontro de dois grupos de turistas japoneses.
As razões para estarmos todos aqui são duas: a TV Cultura mostrará à imprensa o primeiro de 16 capítulos da nova série de programas do jornalista Washington Novaes sobre o Xingu, que estréia hoje, às 18h; os kuikuro apresentarão aos brancos dois filmes realizados por eles e farão a inauguração do seu "centro de documentação", que "guardará" sua cultura em imagens e sons.
Tanto Novaes quanto os índios andam preocupados com a continuidade de sua cultura no Xingu. As visões sobre o problema é que divergem.

"Vai se perder"
Carlos Fausto, antropólogo do Museu Nacional, ligado à UFRJ, nesse momento com o corpo pintado e adornado de penas e colares de caramujo, conta que há cinco anos o cacique kuikuro Afukaká mandou chamá-lo para uma tarefa importante. Em tom fatalista, o líder indígena reclamava que os jovens não se interessavam mais em aprender os cantos necessários para a correta realização dos rituais -uns e outros centrais para a manutenção da forma social kuikuro.
"Ele pediu que se registrasse tudo. "Vai se perder", disse. "Estou certo de que isso vai acontecer. Quero que você grave tudo para mim'", conta Fausto.
Com o apoio da ONG Vídeo nas Aldeias, e de recursos de pesquisa seus e de sua mulher, Bruna Franchetto, também antropóloga, deram início à capacitação dos jovens em técnicas de vídeo, para que eles próprios passassem a filmar e a "guardar" seus cantos.

Tecnologia e tradição
Havia um problema: o acesso a esses cantos não podia ser franqueado indiscriminadamente a todos os índios, já que seu saber constitui marca de prestígio, de mestres que os repassam, mediante pagamento em tradicionais bens de luxo, a jovens aspirantes.
Foi necessário realizar pagamentos aos que sabiam os cantos pelo registro. E usar as gravações como um aparato técnico para a transmissão tradicional, e não como uma forma de divulgação irrestrita dessa "riqueza". Fausto diz que está funcionando. Que os integrantes do coletivo kuikuro de cinema -seis ao todo- ganharam prestígio, e que as gravações provocaram uma retomada da procura, pelos mais jovens, do processo de aprendizagem.
A aposta arriscada no domínio da "magia branca", da tecnologia, parece funcionar. Novaes, por sua vez, vê mais riscos de perda que de ganho nesse contato. Com um grande chapéu branco pregado na cabeça, folgadas bermudas e camisa comprida, propõe à reportagem sentar à beira do grande descampado central, enquanto a tarde de sábado cai com velocidade e os mosquitos intensificam a coleta de sangue.
Em 1985, a TV Manchete apresentou dez episódios de sua série "Xingu - A Terra Mágica", que serviu para divulgar a região ao restante do país. No ano passado ele voltou por lá para realizar os capítulos de "Xingu - A Terra Ameaçada".
Novaes diz ficar "com o coração apertado" pelas mudanças por que vêm passando as diferentes etnias do Xingu, especialmente com a incorporação de desejos e objetos dos brancos. Lamenta o ensino bilíngüe nas aldeias, responsável, segundo ele, por abrir, junto com a língua portuguesa, o acesso à televisão e às seduções do "modo de viver" dos brancos.
"Vão sobreviver? Os antropólogos dizem que há muitas culturas que são capazes de absorver elementos das outras sem abrir mão do que é essencial para elas", ele diz. "Diria que, fora da Amazônia, do Xingu, isso não aconteceu."
Daqui a pouco, quando cair a noite, vai começar a projeção dos filmes numa tela branquíssima esticada no meio da aldeia. Primeiro, "O Dia em que a Lua Menstruou", do coletivo kuikuro. Depois, o primeiro episódio da série de Novaes.
Mutuá, o da bicicleta, que vem a ser também presidente da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu, fala sobre a importância de os índios fazerem seus filmes. "Isso é para o mundo ver qual é a nossa organização aqui na aldeia. Muitos brancos não tiveram a oportunidade de conhecer os índios. Outros nem quiseram saber."
Tukumã Kuikuro, 23, integrante do coletivo, diz que eles são mais capazes de filmar sua própria cultura que os brancos, porque sabem "a seqüência" correta das coisas. "Quando brancos montam, fazem tudo misturado", diz. Yakari Kuikuro, 20, assiste aos filmes. Diz que acha bom estudar português, "para saber a vida dos brancos". Vestido com touca de "bad boy" carioca, diz acreditar que sua cultura não vai acabar.
No filme kuikuro, eles perguntam a algumas índias por que dizem que a Lua menstrua, em dias de eclipse, se o satélite é, em sua cultura, masculino. Muitas respondem: "Sei lá".
Mais tarde é dito que é o próprio eclipse que muda, temporariamente, o gênero do astro. Num dos "extras" do filme (a projeção era de um DVD, produzido por eles), o cacique explica seu projeto de proteção da cultura de seu povo, afirma que "a tradição dos brancos é muito forte", e pergunta, sobre os cantos agora em vídeo: "Será que nossos irmãos vão aprender?". "Sei lá", ele mesmo responde.

O jornalista RAFAEL CARIELLO viajou a convite da TV Cultura


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