|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Por que não gosto de eleições
Recentemente (15/8), a
revista "The Economist"
promoveu e publicou uma pesquisa para saber se os latino-americanos, nestes tempos difíceis, continuam acreditando na
democracia. Pergunta: "A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?".
O Brasil foi um dos países em
que os entrevistados mais mudaram de opinião nos últimos anos.
Em 1996, 50% dos brasileiros pensavam que a democracia fosse a
melhor forma de governo. Em
2002, só 37% continuam pensando da mesma maneira. Os que
abandonaram suas convicções
democráticas (13%) querem o
quê? Será que são nostálgicos das
rédeas curtas da ditadura?
A pesquisa colocava uma segunda pergunta: "Em determinadas circunstâncias, um governo
autoritário pode ser preferível a
um governo democrático?". Seria
lógico pensar assim: os sujeitos
que não acreditam mais nas virtudes exclusivas da democracia
devem ser tentados por uma intervenção autoritária. É o que
acontece, por exemplo, com os paraguaios, que também mudaram
de opinião em matéria de democracia. Em 96, 59% acreditavam
na democracia; em 2002, apenas
45% continuam pensando assim.
No mesmo período, a porcentagem de paraguaios dispostos a
aceitar um governo autoritário
cresceu substancialmente. Ou seja, quem não acredita mais na
democracia sonha com a volta de
um regime militar. Faz sentido.
Pois é, os brasileiros deram uma
resposta para atrapalhar o sono
dos pesquisadores. Entre 1996 e
hoje, como já disse, 13% deixaram de acreditar na democracia
como melhor sistema de governo.
Ora, o número dos que aceitariam uma ditadura no lugar da
democracia não aumentou de
maneira parecida, mas -surpresa- diminuiu 9%. Ou seja, no
Brasil, há menos gente para acreditar na democracia, mas também menos gente para esperar
que os militares resolvam a situação.
Aplausos para os brasileiros,
que não se deixaram capturar por
uma alternativa forçada. Entendo assim a posição dos entrevistados: a democracia não respondeu
a nossas esperanças básicas, mas
nem por isso entregaríamos o país
ao despotismo. Sobretudo, não
aceitamos uma alternativa excludente, do tipo: "De um lado, há
stalinistas, fascistas ou militares
e, do outro, a democracia. Olhe,
escolhe e pule". Os brasileiros pareceram responder: não pulo coisa nenhuma, a escolha não é essa.
Minha leitura (otimista) da
pesquisa do "Economist" é a seguinte: estamos cansados de ver o
mundo em preto-e-branco, com
contraste máximo.
É o mesmo cansaço que sinto
durante as eleições. Com raríssimas exceções, os processos eleitorais que presenciei (na Itália, na
Suíça, na França, no Brasil e nos
EUA) sempre foram momentos
tristes da vida democrática.
Gosto da democracia em seu
exercício cotidiano e concreto.
Prezo a discussão numa associação de moradores de vila para decidir se é melhor pedir mais postes
de luz ou o asfalto na rua central.
Aprecio uma reunião de condomínio em que uma senhora idosa
e sozinha defende seu cachorrinho contra a mãe de uma criança
asmática e alérgica aos pêlos de
animais. Em ambos os casos, sinto carinho pelo esforço de inventar formas possíveis de convivência.
Ultrapassamos o tamanho das
comunas medievais e hoje um governo democrático só pode ser representativo: as eleições são inevitáveis. Mas não me digam que
elas são a melhor expressão da
democracia.
A retórica eleitoral parece implicar inelutavelmente duas formas de desrespeito, paradoxais
por serem ambas inimigas da invenção democrática.
Há o desrespeito aos eleitores,
que é implícito na simplificação
sistemática da realidade. Tanto
as promessas quanto a crítica às
promessas dos adversários se alimentam numa insultante infantilização dos votantes: "Nós temos
razão, o outro está errado; solucionaremos tudo, não há dúvidas
nem complexidade; entusiasmem-se".
E há o desrespeito recíproco entre os candidatos. As reuniões de
moradores de vila ou de condomínio não poderiam funcionar se
os participantes se tratassem como candidatos a um mesmo cargo eleitoral. Paradoxo: o processo
eleitoral parece ser o contra-exemplo da humildade necessária para o exercício da democracia que importa e que deveria regrar as relações básicas entre cidadãos: a democracia concreta.
Em 1974, na França, Mitterrand, socialista, concorria à Presidência com Giscard d'Estaing,
centrista. Num debate decisivo,
Mitterrand falava como se ele fosse o único a enternecer-se ante o
destino de pobres e deserdados.
Giscard retrucou: "Senhor Mitterrand, você não detém o monopólio do coração". Cansado de simplificações, o eleitorado gostou, e
Mitterrand perdeu.
Em 1981, a confrontação repetiu-se. Dessa vez, era Giscard que
não parava de apontar em Mitterrand o homem da aventura, do
risco: caso ele ganhasse, a Revolução de Outubro estaria às portas
de Paris. Cansado de simplificações, o eleitorado não gostou, e
Giscard perdeu.
Quem sabe os eleitores do mundo inteiro estejam, há tempos,
cansados da retórica eleitoral e a
fim de ouvir a verdade sobre como é difícil governar, ou seja, a
fim de serem tratados como adultos.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Pesquisa: TV vende comida gordurosa, diz USP Próximo Texto: 59ª Mostra Internacional de Veneza: Bandeira Branca Índice
|