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BERNARDO CARVALHO
Tropeçar na verdade
Nas esculturas de Anish Kapoor, o vazio e o tempo se tornam perceptíveis
UM dos sinais mais gritantes
do empobrecimento da percepção das artes é a idéia de
que o artista está sempre falando de
si. E que a obra é sempre uma espécie de autobiografia. A razão é simples. É muito mais fácil lidar com as
coisas por identificação, reconhecendo por trás delas as intenções e
os sentimentos de uma pessoa, do
que se ver confrontado com o que,
por não ser imediatamente reconhecível, demanda outros modos de
apreensão e um esforço de entendimento.
De tanto tentar corresponder às
expectativas do presente e do mercado, num mundo em que o marketing de si mesmo é a regra, tornou-se
um vício entre muitos jovens artistas transformar seus trabalhos na
confirmação de uma idéia cada vez
mais compartilhada: que toda arte é
expressão de si. Sou artista a partir
do momento em que me exponho
como obra, exprimindo os meus desejos, a minha origem e a minha
identidade (sexual, racial, social etc.)
por meio da representação pública
da minha intimidade, do meu próprio corpo ou de objetos a ele relacionados. Daí a "identidade" ter se
tornado uma palavra tão surrada,
servindo ao mesmo tempo a todos e
a ninguém.
Essa idéia, capaz de provocar inúmeros equívocos, facilita as coisas
para o espectador e para o jornalismo. E este, não por acaso, a incentiva: em vez de eu me perder em abstrações sobre trabalhos refratários
ao reconhecimento imediato e às
explicações acessíveis, posso falar
do artista, explicar o trabalho pela
sua biografia. Sem querer desmerecer uma obra como a de Louise
Bourgeois, que remete incessantemente à sua origem e às circunstâncias familiares, sexuais e psicológicas de sua criação, não é à toa que ela
tenha virado uma referência em
anos recentes, depois de ter sido ignorada durante décadas.
"Ascension", a exposição de Anish
Kapoor no CCBB do Rio de Janeiro
(até 17/9), programada para janeiro
de 2007 em São Paulo, é de certo
modo um antídoto a tudo isso.
"Acho a autobiografia uma forma de
arte muito interessante, mas a considero uma forma menor. (...) Não
tenho nada a dizer, a razão de ser do
artista é revelar, no processo do trabalho, alguma verdade profunda. (...)
A verdade que o artista procura vem
da interação entre o processo de fazer e os sentidos que decorrem do
processo. É preciso ouvi-los. Aí talvez haja alguma coisa com a qual
trabalhar. Antes disso, não há nada
além de psicobiografia", diz o artista
no catálogo da exposição.
Igualmente avesso ao formalismo,
Kapoor acha que o artista é aquele
que, no seu processo de trabalho,
sem conhecer essas verdades profundas, "tropeça nelas". Avança tateando no vazio, atira no escuro. E às
vezes acerta.
Kapoor é um artista que procura
tornar o vazio visível. Seus trabalhos, que lidam com distorções e ilusões de óptica, com pigmentos que
dão às superfícies uma profundidade infinita, com espelhos cegos, com
a oposição e a confusão entre materialidade e imaterialidade, superfície e fundo, côncavo e convexo,
cheio e vazio, fazendo um passar pelo outro, não querem exprimir nada,
mas tentam "fazer exprimir", ou seja, criar um espaço de reflexão, produzir a reflexão pelo espaço.
A "verdade profunda" a que alude
o artista não tem a ver com a simples
descoberta de uma verdade que
existiria por oposição ao que é falso e
ilusório mas, ao contrário, com uma
outra verdade, que é resultado do
paradoxo, do encontro entre opostos, entre o espaço negativo e o positivo, e que só pode ser concebida por
meio da ilusão e do artifício. Ao sugar, refratar, enganar ou rejeitar o
olhar, as obras produzem reflexão.
São objetos em transição, que existem no tempo, dependem da duração da percepção do espectador para
"funcionar", como os espelhos côncavos que, um diante do outro, distorcem e repudiam a visão de quem
os olha, expelindo as imagens para
fora de sua superfície. São o contrário do reconhecimento. A reflexão
não vem do reconhecimento. Vem
da dúvida.
Nas esculturas de Kapoor, o vazio
e o tempo se tornam perceptíveis. O
sentido do imaterial é dado pela matéria. E, inversamente, a obra pode
ser feita do que não é material (como
a coluna de fumaça em ascenção pelo vão central do prédio do CCBB do
Rio e que, em São Paulo, deverá ser
instalada embaixo do viaduto do
Chá). Restaria perguntar: por que o
vazio? Porque é o lugar onde tudo é
possível pela primeira vez, sempre.
Onde nada aconteceu ainda. E está
sempre por acontecer. Não é o lugar
do reconhecimento, mas da possibilidade de conhecimento. E de renovação.
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