São Paulo, terça-feira, 29 de agosto de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Tropeçar na verdade

Nas esculturas de Anish Kapoor, o vazio e o tempo se tornam perceptíveis

UM dos sinais mais gritantes do empobrecimento da percepção das artes é a idéia de que o artista está sempre falando de si. E que a obra é sempre uma espécie de autobiografia. A razão é simples. É muito mais fácil lidar com as coisas por identificação, reconhecendo por trás delas as intenções e os sentimentos de uma pessoa, do que se ver confrontado com o que, por não ser imediatamente reconhecível, demanda outros modos de apreensão e um esforço de entendimento.
De tanto tentar corresponder às expectativas do presente e do mercado, num mundo em que o marketing de si mesmo é a regra, tornou-se um vício entre muitos jovens artistas transformar seus trabalhos na confirmação de uma idéia cada vez mais compartilhada: que toda arte é expressão de si. Sou artista a partir do momento em que me exponho como obra, exprimindo os meus desejos, a minha origem e a minha identidade (sexual, racial, social etc.) por meio da representação pública da minha intimidade, do meu próprio corpo ou de objetos a ele relacionados. Daí a "identidade" ter se tornado uma palavra tão surrada, servindo ao mesmo tempo a todos e a ninguém.
Essa idéia, capaz de provocar inúmeros equívocos, facilita as coisas para o espectador e para o jornalismo. E este, não por acaso, a incentiva: em vez de eu me perder em abstrações sobre trabalhos refratários ao reconhecimento imediato e às explicações acessíveis, posso falar do artista, explicar o trabalho pela sua biografia. Sem querer desmerecer uma obra como a de Louise Bourgeois, que remete incessantemente à sua origem e às circunstâncias familiares, sexuais e psicológicas de sua criação, não é à toa que ela tenha virado uma referência em anos recentes, depois de ter sido ignorada durante décadas.
"Ascension", a exposição de Anish Kapoor no CCBB do Rio de Janeiro (até 17/9), programada para janeiro de 2007 em São Paulo, é de certo modo um antídoto a tudo isso. "Acho a autobiografia uma forma de arte muito interessante, mas a considero uma forma menor. (...) Não tenho nada a dizer, a razão de ser do artista é revelar, no processo do trabalho, alguma verdade profunda. (...) A verdade que o artista procura vem da interação entre o processo de fazer e os sentidos que decorrem do processo. É preciso ouvi-los. Aí talvez haja alguma coisa com a qual trabalhar. Antes disso, não há nada além de psicobiografia", diz o artista no catálogo da exposição.
Igualmente avesso ao formalismo, Kapoor acha que o artista é aquele que, no seu processo de trabalho, sem conhecer essas verdades profundas, "tropeça nelas". Avança tateando no vazio, atira no escuro. E às vezes acerta.
Kapoor é um artista que procura tornar o vazio visível. Seus trabalhos, que lidam com distorções e ilusões de óptica, com pigmentos que dão às superfícies uma profundidade infinita, com espelhos cegos, com a oposição e a confusão entre materialidade e imaterialidade, superfície e fundo, côncavo e convexo, cheio e vazio, fazendo um passar pelo outro, não querem exprimir nada, mas tentam "fazer exprimir", ou seja, criar um espaço de reflexão, produzir a reflexão pelo espaço.
A "verdade profunda" a que alude o artista não tem a ver com a simples descoberta de uma verdade que existiria por oposição ao que é falso e ilusório mas, ao contrário, com uma outra verdade, que é resultado do paradoxo, do encontro entre opostos, entre o espaço negativo e o positivo, e que só pode ser concebida por meio da ilusão e do artifício. Ao sugar, refratar, enganar ou rejeitar o olhar, as obras produzem reflexão. São objetos em transição, que existem no tempo, dependem da duração da percepção do espectador para "funcionar", como os espelhos côncavos que, um diante do outro, distorcem e repudiam a visão de quem os olha, expelindo as imagens para fora de sua superfície. São o contrário do reconhecimento. A reflexão não vem do reconhecimento. Vem da dúvida.
Nas esculturas de Kapoor, o vazio e o tempo se tornam perceptíveis. O sentido do imaterial é dado pela matéria. E, inversamente, a obra pode ser feita do que não é material (como a coluna de fumaça em ascenção pelo vão central do prédio do CCBB do Rio e que, em São Paulo, deverá ser instalada embaixo do viaduto do Chá). Restaria perguntar: por que o vazio? Porque é o lugar onde tudo é possível pela primeira vez, sempre. Onde nada aconteceu ainda. E está sempre por acontecer. Não é o lugar do reconhecimento, mas da possibilidade de conhecimento. E de renovação.


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