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MARCELO COELHO
Do virtual ao personal
Não é apenas distração e conversa o que se procura: há necessidade de coisa mais profunda
NO COMEÇO, fiquei assustado.
Mas talvez não seja especialmente horrível a notícia que
li na Folha deste domingo, sobre a
mais nova profissão do mundo.
Trata-se do "personal amigo", e o
nome, por si só, já é um poema.
Amigos, por definição, sempre serão pessoais; o "personal amigo"
inverte o sentido da expressão.
Você paga uma taxa -que vai de
R$ 50 a R$ 300, imagino que de
acordo com a qualidade do profissional- e fica com uma pessoa para conversar, ir com você ao shopping ou tomar uma água de coco
durante sua caminhada. Nada de
sexo: o "personal amigo" só faz
companhia a seus clientes, nada
mais do que isso.
O fenômeno é incipiente, e nada
garante que não venha a sofrer
grandes mutações. Um motorista
particular com diploma universitário, um "personal trainer" mais falante e eclético, um enfermeiro
sem uniforme branco, um guarda-costas mirrado poderiam exercer,
quem sabe, a mesma função.
De resto, há pouquíssimos profissionais em atividade, pelo que
diz a reportagem.
Seria fácil pôr as mãos na cabeça
e ver nessa novidade mais um sintoma da extrema mercantilização
da vida cotidiana dentro dos quadros do capitalismo avançado.
Creio que não se trata disso. Ninguém confundiria o "personal amigo" com um amigo de verdade. E,
se cliente e profissional vierem de
fato a se tornar amigos, seria como
nos casos, não de todo incomuns,
em que, entre a prostituta e seu
freguês, surge algum tipo de ligação sentimental. Namoro, amizade, relacionamento? Acho bom
que a extrema variação das emoções humanas não fique limitada a
duas ou três palavras.
De resto, ninguém é amigo do
mesmo jeito com todo mundo. Minha amizade com A tem características bem diversas da que tenho
com B.
É possível, também, que eu dedique mais confiança a um "personal
amigo" do que a um amigo normal.
Como saber se o sujeito que contratei não irá me seqüestrar?
Será que não é isso o que os clientes, em segredo, procuram? Penso
em várias hipóteses. O cliente pode
estar à procura de um desconhecido em quem confiar: eis uma novidade, em cidades violentas, onde
aproximar-se de alguém para pedir
uma informação qualquer já pode
suscitar reações de pânico.
Ou talvez o contrário: o medo de
assalto e de seqüestro é tão grande
que um dos modos de exorcizá-lo
seria justamente o de chegar mais
perto dos limites do perigo, buscando na internet um acompanhante. O mesmo valeria para
eventuais desejos homoeróticos:
contrata-se um serviço que teria
tudo para parecer sexual, mas não
é. Paga-se uma taxa para negar o
desejo que talvez se sinta.
Claro que, com tudo isso, minimizo o papel, obviamente decisivo,
da solidão pura e simples. E da vergonha da solidão. Há ocasiões, de
fato, em que "não pega bem" estar
sozinho. Conheço quem deteste ir
ao cinema desacompanhado, por
exemplo.
Um outro fator pode estar em jogo nessa "personalização" do cotidiano. O "personal trainer", o
"coach" que prepara executivos para palestras ou depoimentos numa
CPI não estão aí apenas para anestesiar a solidão individual. Menos
que companhia, oferecem ao indivíduo uma dose de atenções, de
cuidados. As esposas de antigamente arrumavam a gola do paletó
de seus maridos. Hoje, o corpo, a
fala, a expressão do rosto são outros paletós de que é preciso cuidar
também.
Recebi pela internet o anúncio
de uma psicoterapeuta que acompanha seus clientes nos locais em
que se sentem inseguros. Analisa,
por exemplo, o comportamento de
uma jovem no barzinho que ela
freqüenta, para entender melhor
por que razão, sendo bonita, nunca
se torna alvo de cantadas.
Mandaram-me também a notícia
de que um site de livros eletrônicos
entrega pelo correio uma fita adesiva para grudar no computador. A
fita tem cheiro de livro real.
Eis aí, quem sabe, o segredo do
"personal-qualquer coisa". Ficamos muito tempo navegando no
mundo virtual. Há o medo e a necessidade de entrar em contato físico com a realidade. Contrata-se
um "personal amigo": pode ser um
amigo falso, mas é uma pessoa real.
A solidão pode ser driblada nas
conversas pela internet. Mas não é
apenas distração e conversa o que
se procura: há, como nos adesivos
com cheiro de livro verdadeiro, necessidade de coisa mais profunda,
quem sabe até se religiosa; penso
em termos como presença, calor,
vida e comunhão.
coelhofsp@uol.com.br
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