São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

O galo de Sócrates


Para todos os efeitos, agosto é um mês cruel, dominado pelo azar, pelos maus eventos

A FAMA existe, é universal e quase histórica. O diabo é saber se é justa. Para todos os efeitos, agosto é um mês cruel, dominado pelo azar, pelos maus eventos. Bem verdade que T.S. Eliot, num verso muito citado, declarou que abril era o mais cruel dos meses.
E os romanos invocavam com o terceiro mês do ano, mesmo antes da morte de César. Como sabemos, naqueles idos de março ele não deveria ter saído de casa.
Aqui no Brasil, agosto é que merece a má fama. Lembrando alguns casos, temos o suicídio de Vargas, a morte de Carmen Miranda, a renúncia de Jânio, o desastre na Rio-São Paulo que matou JK. Muito pouco para justificar a fama.
Agora mesmo, o que de pior nos aconteceu foi o início da propaganda eleitoral obrigatória, a morte de Caymmi e a abominável derrota da nossa seleção na Olimpíada de Pequim. Tais e tamanhas turbulências aconteceram em agosto, mas acredito que poderiam ter ocorrido em qualquer outro mês do ano. De qualquer forma, não deixa de ser uma coincidência.
Isso não quer dizer que não renda meus respeitos à superstição em geral. Nos Estados Unidos, a maioria dos edifícios não tem o 13º andar, os elevadores pulam o número que é considerado sinistro, do 12º andar passam direto para o 14º, cassando o direito de um número que é igual a outro qualquer, e como tal, necessário e inocente em si mesmo.
Seria o caso de alguém (o Papa, a ONU, a Sociedade Protetora dos Animais, o dalai-lama, uma ONG qualquer) propor a abolição do mês de agosto, na esperança de melhorar o astral da humanidade como um todo. Pessoalmente, não sou de dar chute em despacho de macumba, mas não chego a temer esse tipo de malignidade do calendário. Já quebrei a cara inúmeras vezes em várias ocasiões, em quase todos os meses do ano, e, se tivesse de escolher um agosto particular, esse agosto talvez fosse maio -mês que goza de uma aura simpática e pia.
Bem verdade que, em matéria de dias da semana, tenho preferência pelas terças-feiras -e detesto as segundas. Se pudesse, nem sairia da cama no primeiro dia da semana. Não me perguntem por que, realmente não sei. Mas não mudo meus itinerários na vida ou nas estradas por causa de um número ou um mês. Marcel Proust era supersticioso, Eça de Queiroz mais ainda. Garantem que Zé Sarney também o é.
Mesmo assim, reconheço que as grandes culturas da história e até mesmo da lenda foram marcadas pela superstição. Na Grécia, na Roma antiga, nada se fazia de sério sem antes consultar as diversas dicas da época, que iam das vísceras de animais à forma de determinadas nuvens. Sócrates, ao beber a cicuta que o mataria, mandou sacrificar um galo que prometera a um amigo. Socraticamente, seus discípulos cumpriram a promessa do mestre.
Quando Agripina, mãe de Nero, decidiu matar o marido, o imperador Cláudio, para que o filho subisse ao poder, ela se precipitou em algumas horas. Envenenou o marido, e justo neste instante recebeu a mensagem da pitonisa: o dia não era propício à sucessão imperial. Só depois da meia-noite haveria condições mais favoráveis.
O desespero de Agripina não impediu que ela pensasse e agisse rápido: colocou o cadáver de Cláudio sentado em almofadas, meteu-lhe uma taça de vinho na mão e chamou as bailarinas que habitualmente distraíam o imperador antes do sono.
Oficialmente, Cláudio continuava vivo e no trono, pois, se corresse a notícia de sua morte, a sucessão seria automática, à base do tradicional rei morto, rei posto. Só depois da meia-noite, para ser exato, depois da última badalada da meia-noite (não sei se havia badalada naquele tempo, mas uma boa história pede esse tipo de retórica), Agripina chamou os médicos da corte para atestarem a morte do imperador.
Bem, a história é esta -e basta reler Suetônio ou Tácito. Nero substituiu Cláudio depois da meia-noite, nem por isso foi feliz como homem ou como imperador. Deixou péssimo nome e teve um final infeliz: sozinho, abandonado por todos, sem coragem para o suicídio, precisou apelar para um escravo que lhe meteu o punhal no pescoço. Essa cena não foi prevista pela pitonisa. Não tenho certeza, mas acho que não aconteceu em agosto.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Cinema : Linha de passe" tem pré-estréia com Corveloni
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.