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São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 2003

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Pioneiros do Kraftwerk retornam após 17 anos em disco que celebra a maior prova do ciclismo mundial

Robôs de bicicleta

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

O coração das máquinas volta a bater. E agora, os seres robóticos fazem uma corrida de volta para o presente. O grupo alemão Kraftwerk reinicializa suas atividades em estúdio com "Tour de France Soundtracks", álbum de (quase) inéditas que interrompe uma pausa de 17 anos.
Mais do que o resultado em si, o retorno chama a atenção pela sua importância histórica, em tempos de massificação da música eletrônica. Hoje, o Kraftwerk pode ser considerado mais importante até do que os Beatles para a música pop, uma vez que, cada vez mais, as barreiras entre diferentes estilos perdem o sentido.
Tecno, hip hop, electro, ambient -não há vertente da música eletrônica que não tenha brotado na pista pavimentada pelos esforços pioneiros do grupo a partir de "Autobahn" (1974).

Homem-máquina
No final dos anos 60, com um background de música clássica, Ralf Hutter, 56, e Florian Schneider, 55 (a dupla-cérebro do Kraftwerk), eram as ovelhas negras do então em voga rock progressivo. Na base da experimentação, começaram praticamente do zero, criando seus próprios "instrumentos" e recursos, como osciladores de frequências, filtros sonoros e ruídos da natureza retrabalhados eletronicamente (alguém aí falou em sample?).
No conceito, o grupo discorria sobre as dificuldades de relacionamento do ser humano frente ao progresso. Criaram odes aos inventos do homem. "Autobahn" celebrava o ato de andar de carro nas superestradas alemãs; "Radioactivity" (1975) versava sobre as ondas do rádio; "Trans-Europe Express" (1977) transmitia as sensações de uma viagem de trem pela Europa; "The Man-Machine" (1978) já era explícito ao sugerir o conceito do homem-máquina e "Computer World" (1981) era dedicado aos computadores, máquinas de calcular etc.
E o que eles teriam de novo para oferecer após tantos anos?

Paixão por bicicletas
Composto por 12 músicas, o disco traz na verdade quatro variações sobre "Tour de France" (Volta da França), música criada em 1983 a pedido da organização da homônima e mais importante competição ciclística do mundo, para ser usada como tema nas transmissões de TV.
O cheiro de autopirataria não pára por aí. O single da música, em 83, deveria anunciar um disco chamado "Technopop", que nunca chegou a ser lançado. Ironicamente, Hutter sofreu um acidente de bicicleta na época. A faixa e o disco foram então deixados de lado, e o grupo lançou o criticado "Electric Cafe" (1986), que antecederia a pausa.
Com os recursos tecnológicos que foram surgindo desde então, ficou mais fácil para o grupo deslocar-se com seu estúdio Kling Klang. Shows (como uma concorrida e histórica passagem pelo Brasil em 1998) ficaram mais frequentes, um disco de remixes -"The Mix" (1991)- e alguns poucos singles foram lançados.
Novamente, a convite da organização da competição, que em 2003 comemorou seu centenário, o grupo resolveu finalizar o trabalho que havia sido deixado de lado. "Tour de France", portanto, é um disco novo que já chega envelhecido 20 anos em seu conceito. E, desta vez, o grupo não antecipa nenhuma tendência -crítica que ouvem desde 1981, período em que começaram a surgir os primeiros filhotes do Kraftwerk (Depeche Mode, Soft Cell, New Order) e o tecnopop já constituía uma cena.
"Como somos grandes fanáticos por bicicletas, sabemos do que estamos falando", disse Hutter em (raríssima) entrevista à BBC. "Tour de France", o disco, foi concebido como trilha sonora de um filme.
Se na versão original a letra abordava uma visão dos símbolos franceses, as de 2003 ganham mais trechos, que falam de temas associados à corrida: televisão, reportagem, filmagem, fotografia etc. Novamente, a voz robótica de Hutter canta letras minimalistas como "Vitamin", sobre a preparação dos atletas, e "La Forme", que cita elementos do funcionamento da "máquina" humana.
Em certo sentido, é um dos discos mais "orgânicos" do Kraftwerk. Muitas das músicas são feitas em cima da idéia de exames médicos. Entram nas faixas o som da respiração ofegante de Hutter e suas batidas do coração, captadas e adaptadas para entrar no andamento das canções.
"Tentamos incorporar o espírito do ciclismo no álbum. É tudo muito silencioso. Fizemos a música ser cíclica, para tudo fluir calmamente. Quando sua bicicleta funciona bem, você não escuta nada. É apenas o silêncio", disse Hutter.
Engana-se quem pensa que a temática do grupo mudou. Em outra entrevista, pouco tempo após o lançamento de "Tour de France", em 83, Hutter era mais explícito ao dizer que, com a bicicleta, o homem transforma-se numa máquina em movimento. A bicicleta seria, então, a simbiose perfeita entre homem e máquina.
Não deixa de ser irônico que o grupo que sempre vislumbrou o futuro agora olhe para o passado, para um invento sem tantos circuitos eletrônicos envolvidos. A eletrônica deixa de lado a revolução e ganha empolgados ciclistas.



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