São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2005

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CRÍTICA

Poética de Roberto Piva põe a nu a grandeza da vida experimental

EDUARDO STERZI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Frente a uma obra poética como a de Roberto Piva, que ostenta a cada verso o projeto existencial e político que a fundamenta, seria fácil incidir em dois extremos antagônicos, mas infrutíferos, da crítica: apologia e rejeição irrefletidas. Bastaria ao leitor concordar ou não com aquele projeto, e o juízo, favorável ou desfavorável, estaria pronto. Não menos cômodo seria pôr tal projeto entre parênteses e abordar os poemas por critérios técnicos.
Mais difícil -e recompensador- é buscar compreender como as inconsistências das convicções do autor podem estar na base do êxito paradoxal que a poesia, muitas vezes, alcança. Neste primeiro volume das obras reunidas de Piva, que a Globo publica com o título de "Um Estrangeiro na Legião", já se verifica com clareza esta fecunda dissonância entre projeto e obra, intenção e poesia. Em seus dois primeiros livros, "Paranóia" (1963) e "Piazzas"(1964), o exacerbado vitalismo de extração sobretudo nietzschiana, o qual esteve sempre na origem da atitude poética de Piva, encontra a todo momento seus limites no texto, à medida que este se abre para o mundo em convulsão (em especial, uma São Paulo que se transformava em metrópole), e não apenas para o eu.
É conhecida a proposição de Piva segundo a qual não existe poeta experimental sem "vida experimental". Este esforço para lastrear a poesia na vida supõe uma operação conceitual prévia à escrita poética, enunciada no posfácio a "Piazzas" e nos manifestos assinados com o pseudônimo coletivo "Os que Viram a Carcaça", assim como em alguns poemas. Por esta operação, distingue-se uma "vida" digna de ser vivida, a "vida experimental" ("vida cavalgada em emoções", a "grande vida", segundo expressões da "Ode a Fernando Pessoa", de 1961 agora retomada), e uma vida que sucumbe "no torniquete da consciência", que se deixa domesticar pelas "convenções sociais" e resulta, portanto, antipoética.
Mas a figuração da "vida" experimental não será também condicionada pela outra vida reprimida e repressora? Será legítimo o esquema mental eu-e-meus-pares-vivemos/os-outros-estão-mortos? Fábio de Souza Andrade já observou que esta poesia, que se quer "crítica acima de tudo", "nem sempre se dá conta do quanto a falsidade do todo a penetra, contaminando seu protesto". Daí o aspecto aterrador de que o vitalismo às vezes se reveste: "Quero a destruição de tudo que é frágil". A investida de Piva contra a "piedade" e seus agentes, sejam "senhoras católicas" ou "comunistas", só admite a solução de ser impiedoso quando a transgressão estaria em romper com a necessidade de tal oposição.
A exaltação da vida mal dissimula o fato de que, em certo sentido, ninguém mais vive. O grande interesse da poesia de Piva, ao arrepio de seu projeto, está em deixar a nu os limites destas estratégias de auto-ilusão, que são, no fundo, as de toda uma sociedade.


Eduardo Sterzi é poeta, doutorando em teoria e história literária pela Unicamp e autor do livro "Prosa"

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