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CONTARDO CALLIGARIS
É possível estar mal e pensar direito?
Uma das questões mais interessantes da psicologia das
últimas décadas é a seguinte: em
que medida o sofrimento psíquico
de um sujeito deve ser relacionado com um defeito de sua percepção e de seu entendimento do
mundo? Obviamente, a pergunta
é relevante só quando o sofrimento é uma condição severa e duradoura.
Tomemos, por exemplo, a depressão, um estado patológico
que, em princípio, não nos torna
delirantes nem alucinados. "Ser"
depressivo (diferentemente de
"estar" deprimido) significa passar, ao longo da vida, por vários
episódios de depressão profunda e
sofrer de uma constante dificuldade em encontrar a vontade de
viver.
Pois bem, será que ser depressivo implica (como causa ou como
efeito) um erro de percepção e de
pensamento? Qualquer terapeuta
gostaria que fosse assim: bastaria
corrigir o erro e, com isso, quem
sabe a depressão fosse "curada".
Se você é depressivo e enxerga o
mundo como a brincadeira sádica de um deus maléfico, talvez você seja vítima dessa visão "errada". Ao corrigi-la com as palavras
certas, a gente transformaria seu
humor de vez, faria de você outra
pessoa. Mas sobra a pergunta: será mesmo que, por você ser depressivo, sua percepção do mundo está errada?
Em 1979, foi publicada uma experiência (Abramson e Alloy,
"Journal of Experimental Psychology", vol. 108, nš 4), na qual dois
grupos de sujeitos (os deprimidos
e os "saudáveis") deviam descobrir se suas ações tinham ou não
alguma influência sobre uma
lâmpada que, de fato, se acendia
e se apagava ao acaso. Os não-deprimidos, apesar dos desacertos,
concluíram que suas ações eram
eficazes. Os deprimidos concluíram (corretamente) que suas
ações não tinham eficácia nenhuma e que não havia como fazer a
cabeça da maldita lâmpada.
Para alguns críticos, a experiência demonstrava apenas o pessimismo dos deprimidos. Mas resta
que, no caso, a conclusão dos deprimidos foi certeira; portanto caberia salientar o extravagante
otimismo que extraviou os não-deprimidos e constatar o realismo
dos deprimidos. Aliás, a questão
levantada pela experiência de 79
entrou para a história da psicologia como problema do "realismo
depressivo" (há novas experiências publicadas no recente vol. 134
do "Journal of Experimental
Psychology").
O interesse desse debate não é só
clínico. Acaba de sair um livro
imperdível, "Lincoln's Melancholy: How Depression Challenged a President and Fueled His
Greatness" (a melancolia de Lincoln: como a depressão desafiou
um presidente e alimentou sua
grandeza), de Joshua Wolf Shenk.
Shenk se baseia nos relatos dos
que foram próximos de Abraham
Lincoln para confirmar que ele
foi clinicamente deprimido durante a vida toda. Logo, o autor se
pergunta se essa depressão grave
e crônica constituiu um impedimento ou se, ao contrário, foi
uma vantagem na conduta do
presidente americano durante a
Guerra de Secessão.
Ora, Shenk argumenta de maneira convincente que a depressão de Lincoln foi responsável por
suas qualidades de estadista. A
seguir, alguns exemplos:
1) A depressão clínica é sempre
acompanhada por um intenso
processo de pensamento: reavaliação contínua da realidade, dúvidas sobre a ação certa, exame
constante de consciência e por aí
vai. Esse processo leva o sujeito a
um conhecimento especial das
contradições de sua própria alma
e da dos outros. Na vida pública,
isso permite negociar sem desprezo pela parte adversa.
2) O deprimido que ultrapassa
suas crises sem sucumbir tem, em
regra, a coragem e a capacidade
de encontrar motivações sem recorrer a grandes princípios (o que
pediria um entusiasmo que é impossível na depressão). Lincoln,
embora convencido de que a abolição da escravatura fosse moralmente correta, nunca invocou a
certeza de que Deus estaria do seu
lado, mas alegava (inclusive por
escrito) que, quanto a Deus, cada
lado podia considerá-lo seu aliado. É uma outra qualidade crucial para a vida pública, a não ser
que a gente prefira entregar as rédeas do governo a iluminados e
fundamentalistas.
3) A adversidade, para o deprimido, é, por assim dizer, natural
(nada existe sem antagonismo).
Deparar-se com oposição e derrota é, para ele, uma travessia normal. O resultado é a perse-
verança.
Recentemente, uma psiquiatra
(Kay Redfield Jamison, "Touched
with Fire: Manic Depressive Illness and the Artistic Temperament", tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico) mostrou que
uma cura apressada da depressão
nos privaria de inúmeros talentos
artísticos e literários. Shenk estende o mesmo princípio a uma figura política; ele mostra que, no caso de Lincoln, a depressão não foi
"uma falha de caráter que desqualificaria a liderança de um sujeito". Longe de comprometer o
pensamento e as decisões do presidente, ela foi o traço de caráter
que fez dele o estadista lúcido e
necessário num momento sombrio da história de seu país.
Em suma, muitas aventuras dolorosas da mente são partes da
subjetividade de quem sofre e, às
vezes, partes irrenunciáveis, cuja
"cura" deixaria o mundo mais
pobre e mais estúpido.
@ - ccalligari@uol.com.br
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