São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2006

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Cinema

Crítica/"Eu Me Lembro"

Encanto lírico garante boas passagens a filme de Edgard Navarro

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

O cruzamento de dois passados, o individual e o coletivo, como busca de compreensão do caos presente virou tema recorrente em filmes brasileiros recentes.
A sobreposição de história pessoal e do país ao ponto de uma se constituir no foco que elucida a outra encontra-se tanto na poesia de "O Maior Amor do Mundo", de Cacá Diegues, quanto na pedagogia de "Veias e Vinhos", de João Batista de Andrade. "Eu Me Lembro", primeiro longa do baiano Edgard Navarro, que estréia hoje, reafirma essa temática num esforço mais polifônico.
Desde o título, o longa de Navarro assume-se como um trabalho da memória, em que a nostalgia é a força que pretende restaurar aquilo que foi perdido, dissipado ou simplesmente agredido ao longo do tempo por forças autoritárias.
Para isso Navarro procura estabelecer, antes de tudo, uma empatia com o espectador por meio da identificação com seu protagonista, o garoto Guiga, que se transformará sob nosso olhar em adolescente rebelde, jovem libertário e adulto em crise.
É em particular na primeira parte dessa história que o filme de Navarro é mais feliz porque se distingue por um encanto lírico típico da nostalgia. No prólogo dessa vida condenada, como a de milhões de nós, é que se encontra mais do que se chama comum.
A magia da natureza e o despertar do desejo misturam-se aos afetos e aos desafetos domésticos, que o diretor pinta no retrato de cada figura da família, tenha ela ou não maior importância na fase seguinte da narrativa.

Federico Fellini
Do pai autoritário às criadas afetivas, passando pela mãe edipiana, a tia lúbrica, o irmão don-juanesco e a irmã carola, todos os personagens desse universo aparecem carregados com um humor peculiar.
A respeito de "Eu Me Lembro", fala-se muito numa inspiração felliniana, sobretudo nas similitudes com "Amarcord", o que não é equivocado. O que torna, contudo, mais atraente essa referência não são os meros elementos recorrentes -o tio louco, a libido juvenil-, mas a transmutação do imaginário, da Itália para a Bahia através de um barroco transbordante, que contamina de excesso todas as figuras da infância, sobretudo as femininas.
Quando sai dessa vertente o filme se torna menos interessante. É o que acontece quando avança no tempo e tenta deixar claro o efeito traumático das mutações históricas.
Um ponto de ruptura dramático o reconduz para um eixo demasiado explicativo e a partir daí o destino do protagonista passa a rimar mais com os desatinos sociais do país.
A necessidade de reiterar o valor "barra-pesada" do regime militar faz "Eu Me Lembro" patinar no território do clichê, com a entrada de personagens estereotipados, apesar de verídicos, como o guerrilheiro e o "bicho grilo".
É só no fim, ao restituir a primazia às delícias do imaginário, que "Eu Me Lembro" reencontra sua originalidade.


EU ME LEMBRO   
Direção: Edgard Navarro
Produção: Brasil, 2006
Com: Lucas Valadares, Arly Arnaud e Fernando Neves
Quando: em cartaz nos cines Espaço Unibanco, Frei Caneca Unibanco Arteplex, HSBC Belas Artes, Lumière e Reserva Cultural


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