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Cinema
Crítica/"Eu Me Lembro"
Encanto lírico garante boas passagens a filme de Edgard Navarro
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
O cruzamento de dois
passados, o individual
e o coletivo, como busca de compreensão do caos presente virou tema recorrente em
filmes brasileiros recentes.
A sobreposição de história
pessoal e do país ao ponto de
uma se constituir no foco que
elucida a outra encontra-se
tanto na poesia de "O Maior
Amor do Mundo", de Cacá Diegues, quanto na pedagogia de
"Veias e Vinhos", de João Batista de Andrade. "Eu Me Lembro", primeiro longa do baiano
Edgard Navarro, que estréia
hoje, reafirma essa temática
num esforço mais polifônico.
Desde o título, o longa de Navarro assume-se como um trabalho da memória, em que a
nostalgia é a força que pretende
restaurar aquilo que foi perdido, dissipado ou simplesmente
agredido ao longo do tempo por
forças autoritárias.
Para isso Navarro procura
estabelecer, antes de tudo, uma
empatia com o espectador por
meio da identificação com seu
protagonista, o garoto Guiga,
que se transformará sob nosso
olhar em adolescente rebelde,
jovem libertário e adulto em
crise.
É em particular na primeira
parte dessa história que o filme
de Navarro é mais feliz porque
se distingue por um encanto lírico típico da nostalgia. No prólogo dessa vida condenada, como a de milhões de nós, é que se
encontra mais do que se chama
comum.
A magia da natureza e o despertar do desejo misturam-se
aos afetos e aos desafetos domésticos, que o diretor pinta no
retrato de cada figura da família, tenha ela ou não maior importância na fase seguinte da
narrativa.
Federico Fellini
Do pai autoritário às criadas
afetivas, passando pela mãe
edipiana, a tia lúbrica, o irmão
don-juanesco e a irmã carola,
todos os personagens desse
universo aparecem carregados
com um humor peculiar.
A respeito de "Eu Me Lembro", fala-se muito numa inspiração felliniana, sobretudo nas
similitudes com "Amarcord", o
que não é equivocado. O que
torna, contudo, mais atraente
essa referência não são os meros elementos recorrentes -o
tio louco, a libido juvenil-, mas
a transmutação do imaginário,
da Itália para a Bahia através de
um barroco transbordante, que
contamina de excesso todas as
figuras da infância, sobretudo
as femininas.
Quando sai dessa vertente o
filme se torna menos interessante. É o que acontece quando
avança no tempo e tenta deixar
claro o efeito traumático das
mutações históricas.
Um ponto de ruptura dramático o reconduz para um eixo
demasiado explicativo e a partir daí o destino do protagonista passa a rimar mais com os
desatinos sociais do país.
A necessidade de reiterar o
valor "barra-pesada" do regime
militar faz "Eu Me Lembro" patinar no território do clichê,
com a entrada de personagens
estereotipados, apesar de verídicos, como o guerrilheiro e o
"bicho grilo".
É só no fim, ao restituir a primazia às delícias do imaginário,
que "Eu Me Lembro" reencontra sua originalidade.
EU ME LEMBRO
Direção: Edgard Navarro
Produção: Brasil, 2006
Com: Lucas Valadares, Arly Arnaud e Fernando Neves
Quando: em cartaz nos cines Espaço
Unibanco, Frei Caneca Unibanco Arteplex, HSBC Belas Artes, Lumière e Reserva Cultural
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