São Paulo, sábado, 29 de setembro de 2007

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Artigo/"Tropa de Elite"

O que pode a linguagem?

Diretor de "Tropa de Elite" e autor de "Elite da Tropa" discutem a realidade da tortura e sua representação, um dos aspectos questionados por críticos do filme

JOSÉ PADILHA
LUIZ EDUARDO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um capitão do Bope, Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM do Rio de Janeiro, depois de torturar por horas um adolescente pobre e negro, numa favela carioca, ante a resistência de sua vítima em delatar o parceiro do tráfico, apanha uma vassoura e determina a seu subordinado: "Zero-Seis, arria as calças dele".

 


"Foi então que me ocorreu estrear os Golfinhos de Miami. Fomos até uma caixa d'água. Retiramos dois fios da rede de iluminação pública. Mandamos o Juninho entrar na caixa e mergulhamos as pontas dos fios, uma em cada lado. Que beleza! Você precisava ver aquilo. Ele saltava com leveza e graça. Só faltava trilha sonora e um jogo de luzes."

 


Qual o horror maior, o maior assombro? As cenas descritas de um ponto de vista distante e crítico, interpretando suas condições de possibilidade histórico-culturais, ou na voz e pela perspectiva de quem incorporou tais condições, inconsciente da eficácia subliminar e ubíqua, inteiramente distante de qualquer sensibilidade crítica?
Optamos pelo horror maior. Tortura prescinde de adjetivos e metalinguagem. Tortura é sinônimo de barbárie; seria absurdo explicar as razões pelas quais ela é o inverso de toda razão. A primeira cena está no filme "Tropa de Elite"; a segunda, no livro "Elite da Tropa".
Eles nasceram e cresceram como obras distintas e autônomas, mas atravessadas por fontes, referências, intenções e estrutura narrativa comuns. E uma indagação compartilhada: como a sociedade constitui policiais capazes de torturar e de atribuir à selvageria um sentido, convertendo-a em performance funcional e em instrumento de trabalho passível de cálculo e distribuição metódica?
Seria extremamente simplificador reduzir a magnitude desse problema e sua complexidade a explicações de natureza individual, moral ou psicológica. Ainda que essas dimensões sejam relevantes, patologias e idiossincrasias, "desequilíbrios" e "desvios de caráter" não dariam conta da escala do fenômeno, nem de sua incessante reprodução.
Sob 4.329 mortes provocadas por ações policiais nos últimos quatro anos, no Estado do Rio (muitas das quais ocultando execuções), está em curso a afirmação repetida de um padrão institucionalizado, de uma cultura corporativa, de uma política. A maioria desses atos é praticada por indivíduos tão normais quanto podem ser, em média, cidadãos de nosso país: pais de família, estudantes universitários, religiosos, dotados do juízo mediano que caracteriza o senso comum.
Aqueles que perpetram essa barbárie justificam seus atos recorrendo ao estoque de valores disponível em nossa cultura, adaptando o inominável às expectativas éticas que organizam os discursos correntes. Essa estranha e oblíqua operação naturaliza o abominável. O corpo do outro, desprovido de subjetividade e valor intrínseco, reduz-se a meio e objeto sobre o qual o poder se exerce.
Mas essa experiência tem de ser aceitável para seu protagonista, não só para a sociedade. É indispensável adaptá-la a uma visão de mundo que a justifique. Livro e filme buscam desvelar essa operação adaptativa e essa visão de mundo, focalizando-as a partir de seu interior e de seus mecanismos cotidianos, conduzindo leitor e espectador ao fundo mais sombrio de suas possibilidades emocionais e simbólicas.
Um personagem verossímil e capaz de ser o anfitrião nesse universo de trevas, vinganças e estratégias tem de crer nesse mundo que criou (ou ao qual aderiu) para apaziguar suas angústias, no esforço desesperado e impotente de compatibilizar valores e práticas inconciliáveis. Esforço vão, mas, por isso mesmo, sempre reiniciado, de racionalizar, processar, elaborar o excessivo, o resíduo que escapa, o vestígio que não se encaixa. Alguém poderia acreditar que o personagem que crê em sua ilusão perversa seria poderoso a ponto de seduzir sua platéia, a despeito da crueza de seus atos mais violentos?
Desconstruir essa visão de mundo e os mecanismos micropolíticos que a tornam social e subjetivamente sustentável exige mais do que palavras críticas e conscientes. Requer a dramatização de seus impasses pelo atrito entre, de um lado, a opacidade impermeável dos valores que justificam a barbárie em nome da civilização, e, de outro, as imagens descentradas, incompletas, sujas, resistentes à unidade clássica que tudo integra, pacifica e harmoniza.

JOSÉ PADILHA é diretor do filme "Tropa de Elite" e LUIZ EDUARDO SOARES é co-autor (com André Batista e Rodrigo Pimentel) de "Elite da Tropa" (ed. Objetiva), livro em que a produção é baseada


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