São Paulo, terça, 29 de setembro de 1998

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A Monica Lewinsky é bonitinha, mas ordinária

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

² O telefone preto tocou de novo. Quem faz o favor de me ler sabe que eu, de tempo em tempo, falo com Nelson Rodrigues em busca de conselho; melhor dizendo, ele sabe quando eu preciso de atendimento. Alguma coisa chega ao céu, lá na nuvenzinha de papel pintado onde ele vive, como um cenário de teatro Recreio, e aí, batata, ele me liga. Pois eis que o negro telefone tocou. Como ele dizia: "O telefone tocando é uma janela aberta para o infinito...".
- Rapaz, você atendendo ao próprio telefone como se fosse o contínuo de si mesmo...
(Sempre o mesmo bordão, como uma senha. E eu respondo, em contra-senha.)
- Eu sou um pobre homem de Póvoa do Varzim, Nelson...
- Que nada... você ainda tem um pouco de pão e manteiga para lhe barrar por cima...
(Essas frases do Eça de Queiroz sempre abriam nossa conversa...)
- Rapaz, estou besta!... Eu só, não: os querubins, os serafins, arcanjos, virgens falecidas no século passado, suicidas que tomaram formicida com guaraná, está todo mundo besta no céu, rapaz, com a mudança no mundo. O mundo levou exatamente meia hora para mudar...
(Eu, metido a intelectual em pânico, embarco na teoria.)
- Pois é, Nelson... a globalização da economia mostrou sua face verdadeira porque, veja bem, a burguesia internacional, por conta de uma grande voracidade monetarista, estava tentando nos convencer de que novas "relações de produção" criariam da miséria uma nova classe média emergente.
- Rapaz, pára com isso... que "classe média" que nada; o "Homem" é de classe média... O que eu estou besta é justamente o contrário: como os pecados capitais mais vagabundos podem mudar o mundo. Os comunas diziam que eu era "alienado" porque eu não acreditava na economia; agora, está aí... Vou te contar uma história... Um dia o Ruy Guerra, grande cineasta, e o Vianninha, pálido e bonito como um Byron do Partidão, resolvem escrever um roteiro de filme chamado "O Adultério". Pois, como eu era o "alienado de carteirinha", me chamaram para escrever com eles. Eu fui a umas duas reuniões e depois desisti, porque eles queriam uma visão "sociológica" do pecado. Queriam que eu escrevesse uma estória em que a mulher, uma senhora casada, fina e pura, fosse trair o marido, caindo na cama do amante movida apenas pelas "relações de produção", rapaz... Eu desisti. A santa senhora não tinha culpa nenhuma em botar chifres de búfalo da ilha de Marajó no marido... Tudo era "culpa das contradições do capitalismo". Fui embora. E, agora, você vê que eu tinha razão...
- Como assim? (Respondi eu, como nos maus diálogos de filme dublado.)
- Ora, rapaz, o mundo está curvado diante do adultério. O Ocidente inteiro está diante da "Engraçadinha" ou da "Bonitinha". A Monica Lewinsky é exatamente a Engraçadinha, o Clinton é um fauno de tapete e o Ocidente é um folhetim de Eugenio Sue, rapaz, o Ocidente é a "Revista do Rádio"... Por exemplo, qual é a razão que move este homem Kenneth Starr? É impressionante o ódio dele contra o Clinton, só parecido com o ódio do dr. Alceu de Amoroso Lima contra mim... Ele dizia: "Sai desta lama, Nelson!...". Ele era um poço de virtudes. Diante da virtude do dr. Alceu, todos nós tínhamos vontade de virar imediatamente ladrões de galinha. É também feito o Gilberto Amado, que escreveu um livro de memórias em que não havia nem um só pecado, um deslize, um pequeno crime. Diante das memórias de Gilberto Amado, os leitores ficavam com saudades da degradação, com uma imensa nostalgia do excremento. Só uma grande paixão justifica esse ódio do Starr; esse homem é apaixonado pelo Clinton. Veja você, rapaz, outro tema meu: a paixão negra, obtusa. Quer ver outra? A inveja do Newt Gingrich...
- Poxa, Nelson, você está informado...
- Os querubins lêem o "New York Times" e me emprestam. Eu dou a eles o "Jornal dos Sports". Pois o Gingrich é a maior inveja do universo. Tudo que ele quer na vida é amarrar o Clinton no pé da mesa, bebendo água na cuia de queijo Palmira. Por quê? O óbvio: porque o Clinton é bonito feito um galã de filme de mocinho, cheio de amantes, e é presidente. E ele, com aquela cara "lombrosiana", feio e cabeçudo feito um anão de Velázquez...
- Você gosta do Clinton, Nelson?
- O Clinton é uma ilusão... Se você for olhar o governo dele, vê que ele não fez absolutamente nada... Quis fazer um plano de saúde pública, ficou difícil, desistiu; jogou os democratas para "corner" e coisa e tal... Ele teve uma sorte danada, porque os Estados Unidos estão riquíssimos... Todo americano tem um Mercedes com chafariz dentro... E, como ele é bonito, tem um sorriso encantador de menino, pronto... Ele satisfaz nossa fome de ilusões... de grandeza... O feio não perdoa...
- Mas a globalização da economia não vai dar certo?
- Que "globalização", rapaz... Os EUA estavam desesperados com tantas vitórias também... Ninguém aguenta tanta vitória... Você viu aquele sujeito, o John Meriwether, o dono da LTCM, a mais chique corretora do mundo...
- Quem?
- Você não lê o "Financial Times", rapaz... Aqui no céu, eu leio... Pois esse Meriwether dirigia bilhões dentro de sua piscina em Connecticut, era patrão de dois prêmios Nobel... Os prêmios Nobel puxavam- lhe o saco, comiam alpiste na mão dele. O homem mexia em US$ 1 trilhão, igual à produção da China. Pois o sujeito faliu, rapaz; está roendo rapadura no meio- fio de Wall Street... Por quê? Máscara. Cobiça. O sujeito mascarado acaba assim. São paixões... tudo folhetim... Não tem nada de "globalização"... Isso é lero-lero. Debaixo deste negócio de que há uma espécie de "razão natural" da economia que regula tudo, como se os homens não existissem, o que há são as paixões humanas: o egoísmo, a vaidade, "a fome de um lado e de outro a indigestão", como dizia Thomaz de Alencar, poeta lírico-político em "Os Maias". Desculpe a máscara, mas o mundo está muito parecido com a "Vida Como Ela É". Feito a "adúltera" do Vianninha. Por baixo das "relações de produção", estão os sete pecados capitais. Agora, eu acho isso muito bom, para acabar com esta coisa de que somos uma "grande nação única", comandada pelos americanos... O mundo é o Méier, rapaz, o mundo é Madureira... Pode ir ao Japão, às Filipinas que Cascadura está lá mesmo, com botequim e cachorro vira- lata. Isso é bom; os reis do mundo estão tendo de prestar atenção de novo em nós, os barnabés, os "pés-rapados". Se a gente morrer de fome, quem vai comprar no armazém deles? E tem mais: os EUA estão também descobrindo que eles não passam de uma grande Cascadura disfarçada. Eu nunca vi, meu Deus, tanta fome de se mostrar como eles estão tendo... Eles estão tendo a suprema volúpia de mostrar todas as sujeiras para a humanidade inteira de boca aberta. Eu tenho a teoria, o palpite de que os EUA não aguentavam mais tanta vitória, tanto sucesso. Meu palpite é que os americanos estavam com uma profunda nostalgia do excremento, feito os leitores do Gilberto Amado e do dr. Alceu...
- É isso aí, Nelson...
- E você, rapaz, pára com este negócio de Nova York e volta pro Méier...



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