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CARLOS HEITOR CONY
Cassiano Ricardo, a fonte e o enigma
Semana passada, em palestra na Fundação Cultural
Cassiano Ricardo, em São José
dos Campos, comemorando o 30º
aniversário da morte do poeta, tive a oportunidade de fazer uma
aproximação que não sei se é original, uma vez que já levantada
por algum estudioso de sua obra.
Encontrei no poema mais famoso
de Cassiano a mesma trama de
"Iracema", de José de Alencar.
Não sendo crítico, nem tendo
vocação para um tipo de trabalho
que exige erudição e equipamento técnico, limitei-me a expressar
uma consideração feita após a releitura de "Martim Cererê", poema que é considerado oficialmente como a obra mais importante
de Cassiano.
Pessoalmente, prefiro outro
poema dele, "Jeremias sem Chorar", que pertence à fase final de
sua carreira, ao contrário do
"Martim Cererê", que marca praticamente o começo de seu caminho pelo modernismo literário,
do qual foi um dos nomes principais.
Fica difícil aproximar um dos
textos mais representativos do
nosso romantismo, ainda mais
em prosa e, explicitamente, em
forma de romance, com uma das
obras mais expressivas do modernismo pós-22, e ainda por cima, o
modernismo poético, numa das
manifestações fundamentais do
movimento verde-e-amarelo, que
teve entre seus cultores, formando
a ala direitista daquela semana
histórica, Plínio Salgado, Menotti
Del Picchia, Cândido Motta Filho
e o próprio Cassiano Ricardo.
Antes de mais nada, a constatação estilística. Assim como Alencar deu tudo de si na construção
de "Iracema", mais do que em "O
Guarani", no poema de Cassiano
temos a expressão xiita dos valores considerados modernos, sem o
futurismo europeu que tanto contaminaria a obra de Oswald de
Andrade. Nenhuma piada, nem
uma revolução, antes a (r)evolução dos conceitos que fizeram
aqueles intelectuais romperem
com a forma clássico-parnasiana
pela qual era feita a literatura até
aquela data.
Desprezando-se as marcações
pontuais, as tramas paralelas de
uma e de outra obra, temos o
mesmo chassi para o romance de
Alencar e para o poema de Cassiano. A moça nativa, que emerge
do mundo verde, mundo indefinido, diante do Marinheiro que
chega de outro universo. No fundo, o mesmo conflito inicial do índio com o português, e não foi à-toa que Alencar deu à sua personagem o nome de Iracema, que é
um anagrama bem bolado de
"América".
Iracema-América é descoberta e
descobre. Para o europeu que chega, é inicialmente uma mulher,
uma virgem de lábios de mel, mas
aos poucos transforma-se numa
espécie de Pandora de cuja caixa
assombrosa sairão o amor e a
morte.
Em "Martim Cererê", o Marinheiro que vem de longe, deseja
logo possuir a nativa que encontra vestida de seus mistérios e
enigmas. Como a Turandot da
lenda chinesa, que Puccini transformou em sua melhor ópera, ela
não se recusa ao estrangeiro desconhecido, mas impõe não apenas
os enigmas, mas a missão de encontrar a Noite, escondida dentro
de um coco.
Uiara está cansada do Dia, é
sempre dia para ela. Sabe que em
algum lugar, a Noite está à espera
de ser libertada. E o poema de
Cassiano se desdobra numa viagem através de lendas, num mosaico que poderia sofrer outra
aproximação literária, esta com
"Macunaíma", de Mário de Andrade.
Anos mais tarde, já em forma de
ensaio, Cassiano escreveria "A
Marcha para o Oeste", que de certa forma é uma viagem não poética, mas sociológica, do mesmo
movimento migratório em busca
de alguma coisa dentro de alguma outra coisa, o brasil dentro do
Brasil, quem sabe uma noite dentro de um coco -deixo aberta a
questão.
Na palestra que fiz em São José
dos Campos, fui perguntado sobre
as relações do intelectual com o
Estado. Cassiano foi funcionário
próximo do poder, tanto em São
Paulo como no Rio, onde dirigiu
um jornal que pertencia ao Estado Novo. O patrulhamento político, na época -e até hoje- tentou
marginalizar seu nome e sua
obra, que em plano histórico venceu as contingências de seu tempo.
Neste particular, Cassiano pode
ser incluído entre os intelectuais e
artistas que serviram direta ou indiretamente à ditadura getulista,
bastando citar os nomes de Carlos
Drummond de Andrade, que foi o
principal auxiliar de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Cultura, e de Cândido Portinari, que teve suas maiores oportunidades no mesmo período,
sendo ambos homens explicitamente de esquerda.
Lembrei que na Renascença italiana, os grandes nomes que surgiram em Florença e Roma eram
ligados visceralmente aos detentores dos poder, aos Médicis e aos
papas. Nem por isso deixaram de
ser gênios. Guardadas as proporções, o mesmo elo entre poder e arte poderíamos encontrar durante
a vigência do Estado Novo, somando-se aos nomes acima lembrados o de Villa-Lobos, José Lins
do Rego e tantos outros. Uma curiosa extravagância intelectual
que não se repetiria no regime totalitário nascido em 1964.
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