São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Cassiano Ricardo, a fonte e o enigma

Semana passada, em palestra na Fundação Cultural Cassiano Ricardo, em São José dos Campos, comemorando o 30º aniversário da morte do poeta, tive a oportunidade de fazer uma aproximação que não sei se é original, uma vez que já levantada por algum estudioso de sua obra. Encontrei no poema mais famoso de Cassiano a mesma trama de "Iracema", de José de Alencar.
Não sendo crítico, nem tendo vocação para um tipo de trabalho que exige erudição e equipamento técnico, limitei-me a expressar uma consideração feita após a releitura de "Martim Cererê", poema que é considerado oficialmente como a obra mais importante de Cassiano.
Pessoalmente, prefiro outro poema dele, "Jeremias sem Chorar", que pertence à fase final de sua carreira, ao contrário do "Martim Cererê", que marca praticamente o começo de seu caminho pelo modernismo literário, do qual foi um dos nomes principais.
Fica difícil aproximar um dos textos mais representativos do nosso romantismo, ainda mais em prosa e, explicitamente, em forma de romance, com uma das obras mais expressivas do modernismo pós-22, e ainda por cima, o modernismo poético, numa das manifestações fundamentais do movimento verde-e-amarelo, que teve entre seus cultores, formando a ala direitista daquela semana histórica, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Cândido Motta Filho e o próprio Cassiano Ricardo.
Antes de mais nada, a constatação estilística. Assim como Alencar deu tudo de si na construção de "Iracema", mais do que em "O Guarani", no poema de Cassiano temos a expressão xiita dos valores considerados modernos, sem o futurismo europeu que tanto contaminaria a obra de Oswald de Andrade. Nenhuma piada, nem uma revolução, antes a (r)evolução dos conceitos que fizeram aqueles intelectuais romperem com a forma clássico-parnasiana pela qual era feita a literatura até aquela data.
Desprezando-se as marcações pontuais, as tramas paralelas de uma e de outra obra, temos o mesmo chassi para o romance de Alencar e para o poema de Cassiano. A moça nativa, que emerge do mundo verde, mundo indefinido, diante do Marinheiro que chega de outro universo. No fundo, o mesmo conflito inicial do índio com o português, e não foi à-toa que Alencar deu à sua personagem o nome de Iracema, que é um anagrama bem bolado de "América".
Iracema-América é descoberta e descobre. Para o europeu que chega, é inicialmente uma mulher, uma virgem de lábios de mel, mas aos poucos transforma-se numa espécie de Pandora de cuja caixa assombrosa sairão o amor e a morte.
Em "Martim Cererê", o Marinheiro que vem de longe, deseja logo possuir a nativa que encontra vestida de seus mistérios e enigmas. Como a Turandot da lenda chinesa, que Puccini transformou em sua melhor ópera, ela não se recusa ao estrangeiro desconhecido, mas impõe não apenas os enigmas, mas a missão de encontrar a Noite, escondida dentro de um coco.
Uiara está cansada do Dia, é sempre dia para ela. Sabe que em algum lugar, a Noite está à espera de ser libertada. E o poema de Cassiano se desdobra numa viagem através de lendas, num mosaico que poderia sofrer outra aproximação literária, esta com "Macunaíma", de Mário de Andrade.
Anos mais tarde, já em forma de ensaio, Cassiano escreveria "A Marcha para o Oeste", que de certa forma é uma viagem não poética, mas sociológica, do mesmo movimento migratório em busca de alguma coisa dentro de alguma outra coisa, o brasil dentro do Brasil, quem sabe uma noite dentro de um coco -deixo aberta a questão.
Na palestra que fiz em São José dos Campos, fui perguntado sobre as relações do intelectual com o Estado. Cassiano foi funcionário próximo do poder, tanto em São Paulo como no Rio, onde dirigiu um jornal que pertencia ao Estado Novo. O patrulhamento político, na época -e até hoje- tentou marginalizar seu nome e sua obra, que em plano histórico venceu as contingências de seu tempo.
Neste particular, Cassiano pode ser incluído entre os intelectuais e artistas que serviram direta ou indiretamente à ditadura getulista, bastando citar os nomes de Carlos Drummond de Andrade, que foi o principal auxiliar de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Cultura, e de Cândido Portinari, que teve suas maiores oportunidades no mesmo período, sendo ambos homens explicitamente de esquerda.
Lembrei que na Renascença italiana, os grandes nomes que surgiram em Florença e Roma eram ligados visceralmente aos detentores dos poder, aos Médicis e aos papas. Nem por isso deixaram de ser gênios. Guardadas as proporções, o mesmo elo entre poder e arte poderíamos encontrar durante a vigência do Estado Novo, somando-se aos nomes acima lembrados o de Villa-Lobos, José Lins do Rego e tantos outros. Uma curiosa extravagância intelectual que não se repetiria no regime totalitário nascido em 1964.


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